quarta-feira, 16 de abril de 2014

Uma noite, um dia e uma noite mais depois... cheguei a Machico!


Contrariamente ao que havia previsto, não tomei notas no meu caderninho ao longo da minha viagem de 85 km pelos montes e vales da ilha da Madeira. Faltou-me destreza em determinados momentos para andar. Imagino se tentasse desenhar duas palavras com o bico da caneta!

Fui a Susana feliz e a Susana triste. A Susana energizada e a Susana derreada. Fui a Susana em modo “acredito” e a Susana em modo “não vai ser possível”. Fui também a Susana a correr e a Susana a deambular. Fui a Susana “quero” para, minutos depois, ser a Susana “não quero”. Fui a Susana lúcida e a Susana alucinada. Fui a Susana sem medo e fui a Susana cheia dele. Fui de tudo um pouco ao longo das 25h42m que constituíram esta aventura.

Muitas vezes me dizem que gostam de ler os meus relatos porque, com eles, consigo transportar os leitores até às aventuras que vivo. Pois bem… deixem-me desde já que vos diga que, desta vez, por melhor que seja a seleção das palavras, estas dificilmente traduzirão o que senti. Não conseguirão entender o que eu vivi. Nem eu conseguirei perceber o que viveram os atletas dos 115 km. Se querem saber como é, visitem a Madeira e o MIUT no ano que vem!

Uma “pequena” amostra do que nos espera

Aos 500 metros de prova já pensava ser impossível terminar. Dei comigo a subir de costas a parede que nos foi oferecida imediatamente a seguir à partida em Porto Moniz. Os gémeos pareciam pegar fogo! Depois de muito subir, entrámos finalmente num trilho que era chão. Muitas vezes ouvi eu este termo na Madeira. Para os locais, “chão” é sinónimo de plano. Mas a sensação que tenho é que pouco “chão” pisei!

A descida até ao km 5 deixou-me novamente entusiasmada e emocionei-me com os fortes aplausos e palavras de ânimo que recebemos por parte dos locais quando chegámos ao vale. “Olha esta pequenina”, diz uma senhora. “Esta pequenina já tem idade para ter juízo”, pensei eu, sorrindo. O sorriso esvai-se rapidamente. Começa a mais longa subida de todo o percurso dos 85 km. Mais coisa, menos coisa, e até ao km 27, nada mais teremos do que subidas, subidinhas, subidonas, escadas, escadinhas e escadões. É também neste momento que começo a ver a Mariana a afastar-se, a bom ritmo, e inicio assim a minha jornada a solo.

By night…

O CP1 em Fanal ao km 13 faz-me recuar no tempo. A noite, as luzes, a tenda… tudo isto me remete para Portalegre e para o UTSM há um ano. Boas recordações! Misturam-se os atletas das duas provas, recarrego energias e sigo caminho.

Seguem-se muitas horas de noite escura, sem estrelas e muito nevoeiro. Temperatura amena. Silêncio absoluto. De quando em vez alguém passa por mim. Vejo uma luz vermelha traseira a piscar. Vejo ao fundo um frontal quando me volto para trás. Gosto disto. Adoro isto. E não… não tenho medo.

O Paulo Pires ultrapassa-me. Trocamos algumas palavras. E assim vai acontecendo ao longo da prova. Os amigos dos 115 km, que sobem e descem mais do que eu que faço os 85, sempre retomam ao trilho que sigo e dão-me “palmadinhas nas costas”.

O João Mota cruzou-se comigo 4 vezes. O Didier e o Ricardo Belchior por duas vezes se cruzaram no meu caminho. Da primeira vez acharam que não chegaria ao fim, disseram-me depois. Na segunda ficaram surpreendidos por me ver correr como se estivesse na Corrida do Sporting, num longo estradão a cerca de 15 km da meta. Escuso de esclarecer que isto nada tem de grandioso, pois todos sabem que corro a 6'/km em estrada. O Ricardo Diez, Paulo Picão e Pedro Lizardo apanharam-me num trilho em single track, enquanto me debatia com o sono que quase me atirava para um qualquer arbusto. Como me sabia bem ver caras amigas, sorrisos conhecidos e palavras de incentivo!

Por diversas vezes me lembrei da crónica do José Guimarães, que correu os 115 km do MIUT em 2013, acompanhado do Miguel Pereira. Fizeram a prova juntos. Recordo-me do Zé fazer referência a um provérbio japonês que nos diz “ao lado do teu amigo, nenhum caminho será longo”. Não tive a companhia física desse amigo de que nos fala o provérbio japonês. Tive-a à distância de várias dezenas de mensagens escritas e palavras trocadas. "Onde estás, Susana?", perguntava-me. “Vais agora subir X metros”. “O declive é de Y%, Susana” . “Já fizeste a parte mais difícil”. “Força!”. “Tenho orgulho em ti!”. Rui, és esse amigo do provérbio e muito mais, e sabes lá como foste importante para que conseguisse caminhar e correr até ao fim!

O “Olá!” para a câmara e a subida ao Pico Ruivo

Depois de sair da Encumeada, iniciava a subida ao Pico Ruivo. Passo por um cameraman que pensava pertencer à organização. Quase sem fôlego, cumprimento-o com um “olá” arrastado, como sempre faço quando vejo alguém a fotografar, a filmar, a trabalhar nos abastecimentos e fora deles. Mais tarde viria a perceber que afinal se tratava de uma câmara da RTP1, quando, falando com os meus pais algures a meio do percurso para os tranquilizar, me disseram que me tinham visto na TV. Ficaram seguramente mais tranquilos depois de terem visto a esclarecedora reportagem!

A subida ao Pico Ruivo remeteu-me novamente para o UTSM. Estava a revisitar a subida a Marvão com a agravante de a subir não 4, mas sim 435 vezes! Há horas que tinha saído da Encumeada. 10 km apenas separavam os dois pontos. Estava exausta e as escadas não me davam tréguas. As escadas tortuosas, inclinadas, bicudas, redondas, baixas, altas. Escadas de toda a forma! As pedras e o cascalho. Tudo tornava a progressão lenta e demasiado difícil. Quando atingi finalmente o Pico Ruivo, o ponto mais alto da ilha, estava decidida a abandonar a prova. 48 km tinham sido percorridos. “Vou ficar por aqui”, disse, vendo o Luís Trindade e o Nelson Diogo chegarem. “Porquê?”, respondeu o Luís. “Estou exausta. Tenho dores.”, respondo de novo. “E eu não tenho dores, queres ver?”, questionou indignado. Aguardei 5 minutos e senti-me envergonhada. Afinal… o Luís e o Nelson acabavam de chegar ao Pico Ruivo depois de subir desde o Curral das Freiras. Eu havia subido dos 1.002 metros aos 1.748 metros. Os atletas dos 115 km haviam descido dos 1.002 aos 648 m, para depois voltarem a subir aos 1.748 metros. “Estás com dores, Susana?”, pensei para comigo. “Tem mas é juízo e mete-te a caminho”. E segui caminho.

Como é linda a Madeira!

Abençoado Luís pelo seu pragmatismo e assertividade, porque percorri um dos mais fantásticos caminhos de todo o percurso - o troço que separava o Pico Ruivo do Pico do Areeiro. Estou mergulhada naquele que é o maciço montanhoso central da Madeira. Não sabia que esta Madeira existia. Desconhecia por completo e é a terceira vez que visito a ilha. Vales profundos, declives escarpados. Escadas de todas as formas e feitios onde mal cabe o meu pé de tamanho 35. Túneis. “Susana, olha para a frente, sempre em frente”, pensei. Luís Sommer Ribeiro, lembrei-me de ti e das tuas vertigens. Eu, que não as tenho, arrepiei e senti as pernas tremer. Mas quanta beleza. Quanta grandeza. E é nosso!

Seguia tranquilamente, apreciando tudo o que me rodeava. Tinha saído do Pico Ruivo com a certeza de que a minha prova terminaria no posto de controlo seguinte, no Pico do Areeiro. Era impossível cumprir com o tempo limite das 16 horas. Tinha 7 km por fazer e pouco mais de 1 hora e meia para os completar. Quando chego já perto das 17 horas ao Pico do Areeiro, passo o chip no controle e anuncio que venho já fora do tempo. “Ainda nada nos disseram no sentido de barrar os atletas, pelo que pode continuar”, respondeu uma menina da organização. Sou envolvida por um misto de angústia e alívio e decido continuar. Só faltam 30 km. Os mais fáceis, diziam. O que tenho como certo é que os 30 km que se seguiram foram uma das mais fantásticas experiências da minha vida.

Alucinando…

Começava a cair a noite. A minha segunda noite em prova. Estou acordada desde as 9 da manhã de 6.ª feira. 34 horas, portanto. O que podemos esperar da nossa cabeça nestas condições? Asneiras, claro!

Nunca fumei. Tirando 2 ou 3 cigarros para mostrar que era crescida, nunca fumei coisa alguma. Agora sei que para alucinar não é preciso nenhuma substância alucinogénica. Basta andar há mais de 20 horas sozinha a monte e o sucesso é garantido.

Até chegar à meta ainda tinha que passar por 4 postos de controlo e por uma diversidade imensa de tipologia de percursos e paisagens. Depois do abastecimento em Lamaceiros, aos 66 km, segui mais energizada para aquela que pensava ser a parte mais fácil de toda a prova. A noite começa a cair e consigo cai também o nevoeiro. Ligo o frontal. Não chega. Ligo o segundo frontal e levo-o comigo na mão, preso ao bastão, como se de uma lanterna se tratasse.

Não vejo as fitas de marcação à distância. Só quando estou bem perto delas. Por cima da minha cabeça apenas uma mancha de luz que se dispersa no nevoeiro. Sigo com prudência porque não consigo perceber que caminho tomar com a devida antecipação.

Entro novamente na floresta e deparo-me com árvores que parece que foram pintadas. Os ramos transformam-se em braços. A folhagem desenha caras de bruxas. Vejo crucifixos e assusto-me. No meio dos arbustos vejo olhinhos vermelhos – estes sei que são reais e pertencerão a um qualquer “bichinho”. Oiço coisas. Vejo caras. Estou a alucinar. Estive perto de chegar a uma situação de pânico, creio. O telemóvel dá sinal de mensagem. A Ana Guimarães está do lado de lá. Ligo-lhe e peço que fale comigo, que diga coisas divertidas. E assim vamos nós, primeiro as duas, depois com o Pedro Quina e o Ricardo Arraias, numa verdadeira “conference call”, que me arrastou para fora dali e para longe do filme de terror que cheguei acreditar estar a viver. Horas depois, já depois de ter cruzado a meta, disseram-me que era normal. Contaram-me histórias de alucinações do mais absurdo que há. Nessa altura sorri e acreditei que afinal era só mais uma pessoa saudável no meio de outros loucos saudáveis. Felizmente não tenho que me sentar no divã de um qualquer psiquiatra!

Quando penso que a partir daquele momento só pode melhorar, vejo-me a descer um trilho técnico que me faz estremecer. Quando o termino, cruzo dois elementos da organização que me alertam que agora só tenho que subir “aquilo ali ao fundo”. A meta está do lado de lá.

Sinto que tenho diante de mim o Monte Evereste. Nunca lá estive, mas acredito verdadeiramente que naquela noite o Evereste aterrou na Madeira. Se estrelas houvesse naquela noite, teria tocado nelas. Só me sentia a subir, a subir, e a subir.

O piso e falta de visibilidade atrasam a progressão. Perco o Norte. Começo a ficar irritada pois sinto-me como se estivesse às voltas no monte. Começo a soltar palavras menos dignas de uma menina. Estou só naquele mundo perdido. "Mas onde estão todos?", penso.

Depois de muitas voltas e caça às fitas de marcação, encontro finalmente o marco geodésico. Só nessa altura sossego, pois sei que se precisar de ajuda, ali saberei comunicar onde estou. Ao longe ouve-se música que penso ser a da meta. Uns momentos depois esvai-se de novo. Estou novamente às voltas e não encontro o momento em que inicia a descida. Quando começo finalmente a descer verifico que ainda estou a chegar ao posto de controlo das Fonduras. Depois disso, pedra e mais pedra a fazer lembrar a Serra da Freita onde nunca estive, seguindo-se mais uma levada, até à Portelinha. Junto à levada vi fantasmas. Afinal eram apenas os lençóis que esvoaçavam no estendal de casas próximas. Muitos fantasmas vi eu! Alucinando, claro!

Mais uma descidita. Começa a chover. O vento sopra forte. Estou a 4 km da meta e agora sim, tropeçando e escorregando pelas pedras que se atravessam no meu caminho, acredito que vou chegar ao fim, antes das 26 horas.

Epílogo

Acredito verdadeiramente que depois do que vivi saí muito mais forte para enfrentar todos os outros desafios que a vida me colocará.

E é talvez por isso que procuro a montanha.

Porque me dá prazer. Porque me faz crescer. Porque me ensina a ter prudência, mas também ousadia. Porque é mais eficaz (e maravilhosa) do que todas as formações em sala sobre valorização pessoal, gestão de stress, liderança (de nós próprios) e outras coisas tais, que se possam frequentar. Não há melhor coach do que a montanha.

Entendam este texto como um testemunho verdadeiro. Não se trata de uma auto-biografia de 26 horas em jeito de auto-comiseração. 

Amanhã é 5.ª feira, e partiria de novo pelas 19 horas para o Funchal, tal como aconteceu na semana passada. Estaria novamente com todos os amigos que partilharam destas alegrias e receios pelos trilhos da Madeira. Alinharia de novo na partida e, se assim estivesse destinado, chegaria à meta pela 1h42 de domingo.



segunda-feira, 7 de abril de 2014

Chegar a Machico



Estávamos em abril de 2005 e trazia um feijão de nove semanas na barriga. Um feijão que viria a ser a Inês.


Lembro-me de estar sentada na esplanada de um restaurante junto às piscinas de Porto Moniz. Recordo-me de ter pedido um bife de atum com molho de maracujá. Adoro maracujá.


Mais tarde, em outubro de 2006, voltei à Madeira por motivos profissionais. Depois da reunião de técnicos de ambiente no Aeroporto do Funchal, regressei ao hotel onde estávamos alojados. Tinha um pressentimento e passei na farmácia. Confirmou-se. Estava grávida do meu segundo filho. Nove meses mais tarde nasceria o Diogo.


A Madeira só me tem deixado boas recordações. Sem omitir o delicioso prego no bolo do caco numa praia cheia de calhau, bem perto da Estalagem da Ponta do Sol, onde fiquei alojada da primeira vez que visitei a ilha. 


Lá está. Pôr-do-Sol, Ponta do Sol, Nascer-do-Sol. Se a ciência não o comprovasse, concluiria que gravito efetivamente em torno daquele astro.


Quinta-feira parto para a Madeira. Não vou em trabalho. Não estou grávida. Não sei se vou em turismo. Há quem considere que sim. Pessoalmente tenho conhecido mais do meu país desde que corro do que antes de o fazer. E não creio que conseguisse conhecer o que tenho visto sentada no banco de umas quaisquer quatro rodas.


A única certeza que tenho - se quem decide a vida de todos não mudar de ideias - é que pelas 00 horas de dia 12 de abril estarei junto de várias centenas de atletas em Porto Moniz, sem bife de atum, mas de frontal ligado na cabeça.


Há qualquer coisa de verdadeiramente encantador nas provas que iniciam à noite. O cenário avistado por quem fica cá atrás, como eu, olhando as centenas de luzinhas montanha acima, é de fazer arrepiar o mais insensível ser deste planeta.


Tenho 26 horas para completar 85 km num verdadeiro sobe e desce com 8.000 metros de desnível acumulado.


Sei que, atleticamente falando, estou longe de estar preparada. Conto apenas com a minha teimosia e a vontade de apanhar o avião de regresso a Lisboa, "as scheduled". Tenho mesmo que me... despachar!


Desta vez levo comigo um caderno de apontamentos e uma "bic". Estou certa que vou querer tomar notas pelo caminho. Mais importante do que o track no garmin - que morrerá ao fim de 8 horas a monte - serão todas as outras experiências vividas num pedaço de terra que flutua no Oceano Atlântico.


Vamos lá então descobrir como se chega a Machico!

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Juramento solene de mães perfeitas

Tivesse eu conseguido escrever estas palavras, que me roubaram sorrisos, gargalhadas, lágrimas no canto do olho, suspiros e "caramba, é isto mesmo".

E são todas estas coisas que a Marta Gautier refere, todas estas e mais algumas, que nos fazem questionar se estamos a desempenhar bem o nosso papel, mas também as que resultam nas nossas maiores alegrias.




Juro ter os meus filhos penteados, limpos, bem vestidos, unhas cortadas, vacinas a tempo. Juro brincar com eles, ser uma mãe divertida, não andar em cima deles, ter vida própria. Juro garantir que aprendem e fazem os trabalhos de casa. Juro esclarecer dúvidas, nunca ir buscá-los depois das seis, dar recados na escola, receber recados da escola, fazer os poemas que a escola pede, fazer os fatos de Carnaval biodegradáveis que a escola pede, mandar dinheiro para o planetário, falar com os professores, falar com as educadoras, festejar aniversários no dia com bolos sem creme (como a escola pede), festejar outro aniversário, noutro dia animado e divertido, com convites, balões à entrada, chapelinhos, bolos com Smarties. Juro comprar presentes para colegas aniversariantes, levá-los às festas, esperar duas horas na rua, voltar a buscá-los. Juro saber lidar com as birras, controlar as birras, inscrevê-los num desporto, acompanhá-los ao desporto, ter um cartão para o desporto, vesti-los para o desporto, ver o desporto, tomar conta do bebé durante o desporto, bater palmas ao desporto, pagar o desporto. Juro escrever cartas ao Pai Natal, escrevê-las com canetas coloridas, estrelinhas à volta, mascarar-me de Pai Natal, deixar bolachinhas para alimentar o Pai Natal, de manhã limpar as migalhas deixadas pelo Pai Natal. Juro dar banho todos os dias, pôr creme todos os dias, mudar camas encharcadas, esfregar colchões encharcados, deixá-los ao sol, não gritar com crianças que encharcam camas, acordar às sete da manhã aos Domingos, ter antiderrapante na banheira, lavar dentes, ensinar a lavar dentes, cortar bifes, ensinar a cortar bifes, tirar cotovelos de cima da mesa, atar sapatos, ensinar a atar sapatos, tirar cebola do arroz, ter babetes impermeáveis, ler histórias, fazer vozes, ensinar músicas, ♪ põe o ovo lá no buraquinho ♪, explicar as instruções dos jogos, ir aos baloiços, empurrar os baloiços, ensinar a não ter medo dos baloiços, ♪ raspam, raspam, raspam ♪. Juro comprar trotinetas, bicicletas com rodas, bicicletas sem rodas, ténis com rodinhas, skates, lanternas, Cds do Panda, Barbies executivas, calças rotas. Juro dar semanadas, ensinar a gerir, ser justa, transmitir valores, valorizá-los, promover bons sentimentos, alimentar a criatividade, fazer aerossóis, e mais aerossóis, outra vez aerossol, ter Ventilan, conseguir atestado médico para voltarem à escola, evitar o excesso de televisão e chocolates. Juro não gritar, não lhes bater, não perder a cabeça, ir a sítios giros, estar atenta às companhias, fazer uma alimentação variada, cozer legumes, ensiná-los a gostar de legumes, verificar se puxam o autoclismo, ensinar a limpar o rabo, verificar se o rabo está limpo, ensinar a limpar o pingo, a pôr a tampa para baixo, a assoar. Juro pôr casacos quentes, gorros, limpar ouvidos, ter os brinquedos arrumados, ter os brinquedos por caixas, ter as caixas por temas, ter os temas actualizados, fazê-los cumprimentar as pessoas, garantir que não gritam, que fazem amigos, pô-los no penico, com amor.
Juro fazer bem o meu trabalho, evoluir profissionalmente, ser humilde, almoçar com colegas, rir com colegas, ter espírito de equipa, ser útil, prestável, ter presença, ter uma presença agradável.
Juro ter a casa arrumada a cheirar a limpo, aquecida, moderna, com design, velas de cheiro, centro de mesa, plantas, regar as plantas, ter quadros na parede, ter os quadros direitos na parede. Juro amar a minha casa, aproveitar a minha casa, ter gosto em cozinhar, surpreender, ter pão fresco, regar as plantas. Juro convidar amigos, saber receber, fazer tudo numa hora, quase sem se reparar, aperitivos, Ervas da Província, chão limpo, cantos limpos, sumos, sobremesas, chocolate quente para pôr em cima, cozinha impecável, abrir o vinho uma hora antes, Nespresso. Juro ser leve, despachada, não fazer dramas. Juro ter o frigorífico arrumado, sal e abrilhantador, fruta, iogurtes com pedaços, nunca deixar faltar leite, detergente, maçãs. Juro ter uma boa pessoa lá a trabalhar, que trate bem as crianças, que as lave atrás das orelhas, que passe a ferro num ápice, mal paga, um bom negócio.
Juro ser sexy, gira, estar gira, vestir-me bem, ter um rabo brasileiro, fazer sexo, comprar algemas. Juro ser companheira do meu marido, ser jovem para o meu marido, ser fresca para o meu marido, seduzir o meu marido, pôr batom para o meu marido, estar sempre pronta, botas leopardo, ter aperitivos para o meu marido, ignorar os seus gritos com os miúdos, ver o canal de notícias. Juro dançar, pintar as unhas, ter charme, ser fiel, ter o cabelo sedoso, pele brilhante, dentes brancos, comer saladas, beber água, fumar pouco, só para o estilo, conhecer a forma mais moderna de fazer um rabo-de-cavalo, pôr creme nos cotovelos, ter soutiens sem alças, soutiens com as alças juntas para certos tops, soutiens com alças giras quando é para se verem, calças brancas que não sejam transparentes, camisas transparentes que não sejam ordinárias, saias ordinárias que só pareçam modernas. Juro controlar o humor antes da menstruação, ter classe, viajar, ser uma boa companhia, visitar os meus avós, aprender com eles, levar-lhes os bisnetos, jantar nos meus pais, não me importar que dêem sombrinhas de chocolate ao netos, não me importar que os deixem jantar de prato no colo. Juro ter tempo, não me queixar, ser divertida, boa amiga, conciliadora, ouvir desabafos, desabafar, chorar só quando é preciso. Juro não ser parvinha, embirrenta, ciumenta, mole. Juro ser feliz, ter graça, inovar, sair com amigos, ler, ser culta, esperta, rápida, solidária, bem-disposta, optimista, interessante.
Juro solenemente.

em NÃO HÁ FAMÍLIAS PERFEITAS de Marta Gautier.