sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Por muito que corramos, nunca correremos tanto quanto eles

(texto originalmente publicado no JN Running)






Azahar, Erica, Enebro, Éon, Era, Espiga, Fado, Fresa, Fresco, Drago, Fauno, Foco, Calabacín, Biznaga, Flora, Fruta, Castañuela, Artemisa, Juromenha, Jabugo, Jacarandá, Katmandú, Kentaro, Kahn e tantos outros. Olhos de gato amarelos-esverdeados, “colar de pelo” que mais parece juba de leão, manchas de leopardo.

Assim é o lince ibérico. Assim o são todos aqueles que enunciei acima e já passaram pelos 5 Centros de Reprodução do Lince Ibérico, localizados em Espanha e Portugal.

Em 2002 a população deste felino estava no limiar da extinção, ocupando a categoria que é considerada a “ante-sala” da extinção de uma espécie na natureza. Em Portugal, não se via um único lince na natureza desde o início da década de 90.

O lince ibérico não está livre de perigo e integra ainda a lista de espécies ameaçadas do planeta, mas o sentimento de quem se lhes dedica é de confiança. Depois de assinado o “Acordo entre Portugal e Espanha para a Criação em Cativeiro do Lince Ibérico”, que constituiu a base para a participação de Portugal no programa de reprodução em cativeiro, Espanha passou a ceder exemplares para a respetiva reprodução em cativeiro no Centro Nacional de Reprodução do Lince Ibérico (CNRLI), a funcionar na Herdade das Santinhas, em Silves.

O I Trail do Lince, que se realizou a 12 de setembro em pleno coração da Serra Algarvia em Silves, foi o primeiro de muitos que lhe seguirão, seguramente. Trata-se de um projeto que pretende aliar o desporto à defesa deste bonito felino, sendo que o propósito da organização é alargar o projeto à escala ibérica, já em 2016.

Por cada inscrição no Trail do Lince foram entregues dois euros ao World Wide Fund for Nature (WWF) e ao Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), apoiando assim a preservação do único grande mamífero carnívoro endémico da Península Ibérica atualmente em perigo.

Com um percurso traçado pela associação Algarve Trail Running (ATR), a prova apresentou-se em três modalidades – trail longo (42 km), trail curto (10 km) e caminhada (10 km) – e reuniu cerca de 300 participantes.

Mais coisa, menos coisa, foram 600 pés a seguir as pegadas do lince, a disfrutar da sossegada Serra Algarvia, a beneficiar do cuidado dos elementos da organização e da simpatia das gentes daquelas paragens - bombeiros e locais, pouco habituados a tanto frenesim, quase exclusivo do litoral algarvio.

Num percurso muito bem marcado, com partes coincidentes com a bonita Via Algarviana (confirmado o meu desejo de a percorrer, de “lés-a-lés”), fomos brindados ora com a sombra proporcionada por eucaliptos e pinheiros nos vales, ora pelo sol que já fazia anunciar um dia quente, enquanto calcorreávamos bonitos estradões na cumeada dos cerros – verdadeiras “chapas” HD a 360º, com horizonte a perder de vista. Foram precisos 30 km para avistarmos as primeiras habitações e ouvir outro som que não fosse o do cantar das cigarras.

A título pessoal, guardarei as imagens de locais que me viram crescer e brincar, a presença do meu pai, que seguindo a sua “cria”, me foi surpreendendo com os seus mimos em diversas partes do percurso e a companhia do António, que prescindiu de seguir o seu caminho mais rápido, dizendo que esta seria uma “experiência diferente”, a de ir “corrandando” pelo trilho (e assim garantiu, naturalmente, o último lugar da classificação geral).

Guardarei também a deliciosa experiência de conseguir o meu melhor e pior resultado de sempre – 3ª e última classificada geral feminina, garantindo-me assim a subida a um pódio que já havia sido atribuído às duas primeiras atletas, alguns minutos antes, com os mesmos aplausos que os primeiríssimos recebem, mas palavras ainda mais carinhosas – porque sim, porque ser (e saber ser) último também exige trabalho.

No sábado passado, os 300 participantes que estiveram na Serra Algarvia “vestiram a pele” dos cerca de 11 linces ibéricos em Portugal a usufruir da liberdade na natureza. Até ao final do ano mais lhes seguirão as passadas. Por muito que corramos, nunca correremos tanto quanto eles. Os dois manos Kentaro e Kahn, libertados há 8 meses no centro de Espanha, percorreram mais de 2.500 km, tendo um seguido para Norte, passeando-se por terras do Douro e outro para o Sul de Portugal, numa viagem épica de duatlo, que incluiu o atravessamento a nado da barragem do Alqueva.

Só este ano o CNRLI já viu nascer 13 crias. Se a reprodução é um sucesso, já a reintrodução desta espécie na natureza apresenta enormes desafios. O nosso desejo é de voltar aqui, daqui a uma década, depois de mais uma edição do Trail do Lince, e podermos escrever que foi retirada a classificação “em perigo” aos exuberantes linces ibéricos.





terça-feira, 1 de setembro de 2015

Lisboa, temporada 3

ilustração: Desenhador do Quotidiano

Lisboa, temporada 3. A sequela da temporada 1 e 2, que já escrevi por aqui.

O primeiro dia do mês é sempre um bom dia para a tomada de decisões. Mais ainda quando se trata do primeiro dia do típico mês de regresso a qualquer coisa - à escola, ao trabalho, à rotina diária sem folgas ou sestas.

Por isso, no dia 1, calço as sapatilhas, saio de casa e desço a avenida do aviador até ao Campo Pequeno, acreditando que sou tão veloz quanto o Louie Zamperini retratado por Laura Hillenbrand – o livro das férias que me obrigou a secar muitas lágrimas nos bordos da toalha de praia. Agora, como estou a ler “A filha do capitão”, do José Rodrigues dos Santos, olho para os rapazes que jogam futebol de 5 no court e recordo que por ali, sem redes ou piso adequado, já outros rapazes correram atrás de uma bola e ainda não se falava em touradas. Vou-me obrigar a não falar de touradas, porque terei que ir buscar os kleenex (já não tenho comigo a toalha de praia) e porque é de facto um fenómeno atroz que não entendo. Tanta coisa que não entendo.

Sigo pela avenida de República, passo frente ao Galeto e penso nas tostas de bife com cebola caramelizada. Depressa me lembro de uma das resoluções do dia 1, largo a imagem e sabor da tosta na esplanada e sigo caminho. O Saldanha está mais bonito. Brutal, como tantos dizem. Oxalá o dia 1 traga consigo uma nova palavra da moda. Detesto “brutal” por ser uma palavra… bruta. Posso sugerir? Sensacional, incrível, estonteante, impressionante, eletrizante, fenomenal, fabuloso, espantoso, formidável, maravilhoso, surpreendente, esplêndido, notável, extraordinário, excecional. Ena, tanta palavra bonita!

Desço a Fontes Pereira de Melo, chego ao banzé do Marquês de Pombal. Cuidado, muito cuidado, Susana. Mais de 500 acidentes em 3 dias, registados pela operação de fim de época estival da GNR. Os números de feridos graves e mortos eram tão absurdamente assustadores, que eliminei dos meus registos. Que raio de gente ao volante neste País. Que giro, se escrevesse “deste”, a afirmação assumiria contornos totalmente diferentes. Mas também não vou falar de política.

Inicio a descida da avenida da Liberdade. Como sempre, os vestidos e malas que não poderei comprar. E, também como sempre, a importância disso é nenhuma. Ao lado do passeio onde corro, a ciclovia que há tempos percorri e mais parecia o mar alto sem amortecimento. Mas lá está. Os que ali fazem compras não se passeiam de pasteleira, por isso, porquê consertar?

Rocio. Sim, à moda do antigamente. Porque antigamente havia por ali os “água vai”, mas também passeavam carroças com cavalos e senhoras com vestidos compridos, chapéus e sombrinhas. E tomar café na esplanada era ritual de luxo. De gente com tempo. Hoje tomamos “bicas” à meia dúzia por dia. E engolimos em dois tragos porque não temos tempo a perder. Quero o Rocio em vez do Rossio, pode ser?

Cais das Colunas. Antes desembarcavam chefes de Estado, caminhando elegantemente sobre as pedras de mármore. Gente importante. Agora… agora vem gente não menos importante, apressadamente, balançando em cacilheiros, com as mordomias que o valor do passe mensal oferece. Nenhuma que não seja a de atravessar para um e outro lado. Mas podem contemplar o rio. Bem bom.

A minha viagem chega a meio. Agora há que voltar para trás. Subir tudo o que desci. E procurar sentido nas palavras de Ludwig Wittgenstein que o José Rodrigues dos Santos escolheu para arrancar a sua história. “O sentido do mundo emerge fora do mundo. No mundo tudo é como é e acontece como acontece”. Prefiro não pensar assim. Afinal, teremos algum propósito nesta vida que irá para além de garantirmos a nossa exclusiva felicidade, certo?

No final, quando tudo parecer demasiado complicado, façamos como nos canta a pequena Paula Bélier – “la vie c'est plus marrant, c'est moins désespérant, en chantant”. Se não viram o filme (La Famille Bélier), vão ver.

Setembro, “o Maio do Outono”. Existirá alguém que não fique feliz com a sua chegada?

Bem-vindo Setembro!