Parei e fotografei... o Risco
Começa a história
A noite já caiu, e com ela aterro no Funchal. Um táxi
leva-me até ao Machico. Ainda na estrada, vejo-o. Vejo o monte que subi o ano
passado, o monte que me fez dar mil voltas, acima e abaixo, debaixo do
nevoeiro, sem nada ver, desesperar, ansiar pela meta. Facho é o seu nome. Um
ligeiro arrepio, mas feliz por estar de volta.
Eu não acredito em
bruxas, mas que as há, há
Dirijo-me ao secretariado em Machico para levantar o meu
dorsal. As meninas da organização entregam-me o material. “Tem aqui tudo o que
vai precisar. Não preciso explicar, pois já sabe como é”, diz-me uma simpática
madeirense. “Já sei como é? Como sabe que sei?”, pergunto intrigada. “Toda a
gente na Madeira leu o seu texto, há um ano”, esclareceu, sorrindo. “Ninguém
quer ir correr à noite por causa das bruxas”, acrescentou. Desta vez sorrio eu
e esclareço que estou cá este ano precisamente para clarificar esse assunto. “Venho
tirar a pratos limpos essa história das bruxas”, respondo. Agarro no meu saco
de “atleta” e saio para apanhar os raios de sol que aparecem pela primeira vez
nessa manhã.
Contagem decrescente
A imagem de marca por estes dias na Madeira era uma
pulseirinha laranja, com chip identificador. Quem a usava, teria oportunidade
de frequentar um verdadeiro resort de trilhos de luxo - versão "tudo
incluído" nos 115 km, "meia pensão" nos 85 km, "alojamento
e pequeno-almoço", nos 40 km e "só alojamento" nos 17 km.
Para alguns, os do regime TI, sábado chegou exatamente pelas 00 horas, com a
partida em Porto Moniz para 115 km de trilhos, veredas, levadas e… escadas,
muitas escadas. Sete horas mais tarde, os hóspedes em regime MP partiriam para
os ondulados 85 km. Três horas mais tarde, pelas 10 horas portanto, seria a
minha vez, e a de umas centenas mais, em regime APA, de rumar ao Machico, com
partida no Pico do Areeiro. Os hóspedes em regime “só alojamento” sairiam à
hora certa para um brunch pelos trilhos, pelas 12 horas, na zona da Portela, a
17 km da meta.
E assim se desenrolou esta peça de teatro, onde a Madeira
foi palco, e centenas de atores e atrizes encarnaram as mais variadas
personagens, facetas, vivências e experiências. Os felizes e os tristes. Os
lúcidos e os alucinados. Houve quem festejasse a vitória, outros conheceram o
sabor da derrota. Uns foram conquistadores, outros renderam-se. Uns acreditaram
que iam conseguir para minutos depois dizerem que não conseguiam mais. Uns
insultaram a montanha para mais tarde a contemplarem com admiração. Para atores
e atrizes, esta peça de teatro é de facto inolvidável pela miscelânea de
sentimentos que faz despertar. A Madeira não urbanizada é sem dúvida uma ilha
de rara beleza e dureza. Mais do que as marcas das sapatilhas nos trilhos, são
estes trilhos que deixam marcas em quem os percorre.
Madeira em APA
Embora tivesse hesitado no momento da inscrição, a fraca
condição física e a necessidade de ver de dia o que tinha visto há um ano de
noite, aquando da prova dos 85 km, levou-me a avançar para o regime “alojamento
e pequeno almoço”. São 40 km totalmente invulgares, onde o desnível negativo
supera o positivo. Mas desenganem-se… descer não é fácil. As dificuldades
fizeram-se sentir ainda a prova ia a meio, com os joelhos a “relinchar” e os
quadríceps a gritar “socorro”.
A pequena subida ao Areeiro terá sido seguramente programada
pela organização para garantir um adequado aquecimento para o que se seguia. O
percurso era-me familiar, ainda que este ano se apresentasse muito mais
apetecível. As pernas ainda estavam frescas. A novidade veio com o desvio para
o Poiso, permitindo percorrer novos trilhos, alguns em modo “onduladinho”, como
tanto gosto. Foi neste troço que fui ultrapassada pelo primeiro atleta dos 115
km, o madeirense Luís Fernandes. Já antevia este momento, apenas não o esperava
tão cedo, pelo que, parando no trilho, boquiaberta, exclamei “já?!”. O Luís nem
me terá ouvido, pois corria a velocidade a que nunca corri sequer em alcatrão.
E segui caminho, em direção ao Poiso, cruzando atletas, turistas e elementos da
organização.
A vereda das Funduras
É agora. Chegou o momento. Inicia o percurso da serra das
Funduras e pela vereda no interior da floresta Laurissilva. Aqui vivi
verdadeiros momentos de alucinação há um ano. Agora vejo pela frente um imenso
verde. Um verde que é floresta indígena da Madeira e Património Mundial
Natural. Os trilhos são mesmo ao meu gosto, mais uma vez onduladinhos,
pontuados de escadinhas aqui e ali. Não resisto e vou parando para tirar
algumas fotografias. Alguns atletas ultrapassam-me e eu sorrio. Não há nada
para sorrir, devem pensar, mas eu sei bem porque sorrio! “Eu vi bruxas aqui há
um ano e os seus braços pareciam querer agarrar-me, percebem?”, dizia eu para
comigo, quando passavam. Vejo-me agora num sitio de extrema beleza, onde nada
mais sinto do que satisfação em pôr as pernas a mexer. O inferno virou paraíso.
Que coisa boa!
O estradão depois das
Funduras
Este seria mais um marco da minha aventura. Estava ansiosa
por descobrir o que vinha depois das Funduras. Mais uma vez, há um ano, a noite
e o nevoeiro cerrado nada me permitira ver, obrigando-me inclusivamente a usar
o segundo frontal, como se de uma lanterna se tratasse. Mas pouco ajudou, porque
a luz nada mais fazia do que se dispersar no nevoeiro, impossibilitando a
visualização das marcações do trilho. Recordo que levei uma eternidade a
finalizar aquele percurso, receando o que se esconderia, ora à direita, ora à
esquerda, conforme o zigue-zague que a montanha me ia oferecendo. E ali estava
ele à vista. Soltei uma valente gargalhada quando me deparei com um
interminável estradão, com não menos do que 6 metros de largura. Ai se eu
soubesse!
O Risco
O terceiro grande momento da minha tarde de sábado. Deverá
ser um dos locais mais fotografados da Madeira e nada mais conseguira do que
ouvir o mar lá em baixo em 2014. Uma vez mais parei, desviando-me para não
perturbar a passagem dos atletas, que arriscavam no risco, destemidos, para
oferecer aos meus olhos aquela que deve ser uma das mais bonitas vistas da
Pérola do Atlântico.
A levada que nos leva
à meta
Mesmo antes do monte que não iria subir este ano, encontro
três elementos da organização e por lá fico um pouco a conversar e a relatar a
minha experiência do ano anterior. “Não me digam que tenho que subir de novo
esta coisa”, exclamei eu, sabendo que não teria que o fazer. “Não menina. Este
ano não é por aí. É mais fácil. É sempre pela levada”, esclareceram. “E onde
acaba a levada?”, perguntei divertida, não vendo o fim do vale e antevendo que
não teriam “furado” a montanha para fazer passar a levada. “É já ali, é já
ali”, responderam, procurando tranquilizar-me. Assim que entrei na levada, não
mais parei, num trote muito ligeiro, acreditando que Machico estava próximo e
com ele a meta e um merecido mergulho no mar.
A meta
Deixo a levada e entro no prado que já conheço. Mas agora
vejo-o e consigo distinguir o trilho que devo pisar. Ao contrário da chuva e do
vento que brindaram a minha chegada há um ano, espera-me um sol radioso. Lá em
baixo, centenas de pessoas se passeiam e recebem com entusiasmo os atletas. Assim
que coloco o primeiro pé no passadiço que me conduzirá à meta, vou recebendo
aplausos e palavras de incentivo. Serpenteio por entre alguns dos transeuntes,
não conseguindo evitar umas quantas lágrimas e o queixo a tremer.
Os aplausos, este ano também do Rui, há um ano à distância de um telemóvel
Era de noite. Hoje é de dia. Não se via vivalma. Hoje vejo tanta
gente! O vento havia destruído o pórtico. Hoje está à minha espera, e diz-me
que passaram 6 horas e 33 minutos desde que parti de manhã.
Fazer estes 40 km em 2015 foi das mais brilhantes decisões
que tomei. Agora sei onde pisei. Agora, porque sei, poderei, se assim desejar, voltar
para saborear o sentimento de superação vivido em 2014.
Digo muitas vezes que há a Susana antes dos 85 km da Madeira
e a Susana depois deles. E o regresso este ano só veio comprovar isso mesmo. A
Madeira deixou a sua marca e voltarei ali para (per)correr… os quilómetros que
o corpo permitir.