“Mais do que a dor, é a beleza que me faz chorar”. Li estas palavras um dia depois dos 28 km do Monte da Lua, em Sintra. A frase da escritora Maria Teresa Horta titulou os pensamentos que me assolaram bem lá no alto, quando recuperava o fôlego, depois de mais uma arriba subida, já depois de ter descido outra, com as falésias e o Oceano Atlântico como pano de fundo. Aos meus pés milhares de chorões cobriam as falésias que se estendem desde antes do Cabo da Roca, até à Praia das Maçãs, onde a meta me esperava. Chorões carnudos. Isso. Um só se terá instalado ali há muito tempo, mas tanto chorou perante tamanha beleza, que depressa se multiplicou nos muitos milhares que por lá moram agora. Sim, a beleza faz mesmo chorar mais do que a dor.
Sabes no que pensei, Rui? “Caramba, já devia ter vindo aqui pelo menos duas vezes. Uma vez para conhecer, a segunda para percorrer estes trilhos com o Rui”.
E assim foi. 28 km por caminhos que praticamente desconhecia. A vertente Norte da Serra de Sintra que ainda permanecia por calcorrear e que não só me ofereceu um banho turco com níveis de humidade que deveriam atingir os 80% e o cheiro a eucalipto que quase embriagava, como também um tratamento com terra molhada num fantástico downhill, que fez subir os níveis de confiança e apressar a passada da corrida, destemida, feliz. Caramba, que prazer me deu. Também passaste por lá depois, e muito mais viste do que eu. Fala-me disso tudo. Dos 26 km que não fiz, da Quinta da Regaleira e da Quinta do Relógio. Do Castelo dos Mouros. E das pedras que dão nome à prova e que brilham ao luar. Fala-me Rui, fala-nos disso tudo, que não queremos perder pitada. E em 2016 lá estaremos todos, para viver uma história como hoje vais contar.
“A Xintra (com “x”, porque os árabes não pronunciam o “S”) que encantou os mouros, que por sua vez encantaram Sintra, tem estórias por todos os seus recantos. A sua história começou a ser escrita há milhões de anos, quando ainda era um vulcão, e cuja lava foi desenhando socalcos até aos pontos mais baixos da serra. A ocidente a crista mergulha abruptamente no fundo do mar, deixando atrás, entrelaçada arborização rematada por arribas e falésias.
Os mouros, encantados com as pedras “barâd” (fosforescentes), que brilhavam na noite, chamaram-lhe monte da Lua, pelo efeito luminoso refletido na constante bruma que a cobria. O ônix, considerado por persas e hindus como protetor contra as más vibrações, o âmbar de primeira qualidade, semelhante ao melhor do mundo – o “xajari” da Índia – e todas as grutas subterrâneas que adensam mistérios, lendas e fábulas, dão a Sintra uma áurea misteriosa e encantada.
Da Praia das Maçãs à Vila, sim, foi um banho turco. Humidade elevada, tão elevada, que quando passávamos de alguma zona exposta ao sol para a sombra da densa arborização, víamos água a pingar no trilho. Subir a encosta de Colares, tentado descobrir onde teriam vivido os monges, que para ali iam viver do que a terra lhes dava. Depois veio Sintra, e a sua história, de reis e rainhas e gente que se rendeu à sua beleza. Na Quinta do Relógio há um sobreiro coberto de fetos, há lagos cobertos de nenúfares e há recantos com bancos de pedra trabalhada. Há história talhada nas paredes do edifício abandonado em obras de restauro. Os palácios de outrora, hoje contadores de lendas românticas, montras de excentricidade desenhada por caprichos milionários, cujo expoente máximo é a Quinta da Regaleira, onde mergulhamos no poço iniciático e serpenteamos anjos de pedra e árvores centenárias e turistas, surpreendidos por gente a correr num cenário onde tudo convida a deter. Ali ao lado, lá no cimo, esperava-nos o Castelo dos Mouros. Fomos por onde só havia gente a escalar. E pingava humidade. Atletas que se perdiam voltavam ao trajeto a sorrir. Cheirava a madeira molhada. Todas as árvores transpiravam. E nós, encharcados com tamanha beleza, mergulhados no suor da subida, inebriados por toda aquela selva magnificente, bebíamos história sem o saber.
D. Afonso Henriques, quando conquistou Sintra aos mouros, deu-lhes tempo para se renderem. Chegado ao castelo não encontrou vivalma. Há todo um conjunto de túneis que levam para bem longe dali. O conquistador não sabia, mas há por baixo da Serra grutas e rios que ligam o alto até à Lagoa Azul ou a Rio de Mouro. E assim nasceu uma lenda. E outras lendas nasceram destas secretas passagens, sendo a mais conhecida a da “Moura dos Sete Ais” (Seteais), que deu sete suspiros por um cavaleiro cristão que a deteve quando tentava fugir com outros mouros por uma porta secreta do castelo.
Mas mais que 7 “Ais” havíamos de dar no que ainda vinha de prova. Um serpenteado de trilhos a descer e a subir, de cortar a respiração pelo que exigiam de esforço, e principalmente pela beleza e paz que induzem. Um troço de 12 km que culminou com uma subida a pique e sob sol abrasador ao ponto mais alto da prova, a Peninha, donde se avista o fim da terra e o início do mar. “Paraíso Terreal”, constava no título do acordo que Ibne Arrique firmou nesta confluência de maravilhas da natureza e onde o homem deveria coabitar em paz. Vista dali, da Peninha, percebe-se que não haja quem queira desembainhar uma espada numa serra que alberga tanta vida. E desaguamos também nós, os dos 52 (53, 54?) como vós, os dos 26 (27, 28?), por um trilho onde voltava a pingar humidade das árvores entrelaçadas, que nos protegiam do calor vespertino.
Chegados então ao ponto onde a beleza faz chorar mais do que a dor, como tão bem descreves, foi sim, esse desenrolar de trilhos arriba e abaixo junto a uma costa que nos faz sentar e contemplar.
Estranho, Susana, não é que não tenhas sido tu a mostrar-me tudo aquilo. Estranho é que o Mundo não possa desfrutar de tudo aquilo, de toda a beleza de uma Sintra encantadora e que a Horizontes nos serviu. Estranho é que as autoridades não deixem realizar esta prova nos meses em que é impossível fazer trail nas Serras mais altas da Europa, e onde Portugal devia e podia ser o refúgio de muitos. Mas Sintra, onde se acarinham filmagens de novos modelos de automóveis – vedando acessos onde as realizava, em pleno Parque Natural -, não permite a realização desta mesma prova no Inverno, quando seria mais fácil atrair gente de outras paragens. Estranho.
Fica a memória de uma prova única. Equilibrada, com largas zonas para correr, excelentes trilhos para sofrer e arribas de cortar a respiração. Início belíssimo e fim a condizer, numa praia famosa pelas suas enormes maçãs, e onde o que mais importa é mesmo o trail. Não achas?
Se acho? Claro que acho isso tudo que escreves tão bem e eu não sei (de)escrever. Obrigada a ti, por esta magnífica estória, cheia de história. E à Horizontes, por nos fazer trilhar tão bela viagem, aqui tão perto, nesse vulcão adormecido, cheio de segredos escondidos.
Autores: Rui e Susana