Contrariamente ao que havia previsto, não tomei notas no meu
caderninho ao longo da minha viagem de 85 km pelos montes e vales da ilha da
Madeira. Faltou-me destreza em determinados momentos para andar. Imagino se
tentasse desenhar duas palavras com o bico da caneta!
Fui a Susana feliz e a Susana triste. A Susana energizada e
a Susana derreada. Fui a Susana em modo “acredito” e a Susana em modo “não vai
ser possível”. Fui também a Susana a correr e a Susana a deambular. Fui a
Susana “quero” para, minutos depois, ser a Susana “não quero”. Fui a Susana
lúcida e a Susana alucinada. Fui a Susana sem medo e fui a Susana cheia dele.
Fui de tudo um pouco ao longo das 25h42m que constituíram esta aventura.
Muitas vezes me dizem que gostam de ler os meus relatos
porque, com eles, consigo transportar os leitores até às aventuras que vivo.
Pois bem… deixem-me desde já que vos diga que, desta vez, por melhor que seja a seleção das palavras, estas dificilmente traduzirão o que senti. Não conseguirão
entender o que eu vivi. Nem eu conseguirei perceber o que viveram os atletas
dos 115 km. Se querem saber como é, visitem a Madeira e o MIUT no ano que vem!
Uma “pequena” amostra
do que nos espera
Aos 500 metros de prova já pensava ser impossível terminar.
Dei comigo a subir de costas a parede que nos foi oferecida imediatamente a
seguir à partida em Porto Moniz. Os gémeos pareciam pegar fogo! Depois de muito
subir, entrámos finalmente num trilho que era chão. Muitas vezes ouvi eu este
termo na Madeira. Para os locais, “chão” é sinónimo de plano. Mas a sensação
que tenho é que pouco “chão” pisei!
A descida até ao km 5 deixou-me novamente entusiasmada e
emocionei-me com os fortes aplausos e palavras de ânimo que recebemos por parte
dos locais quando chegámos ao vale. “Olha esta pequenina”, diz uma senhora.
“Esta pequenina já tem idade para ter juízo”, pensei eu, sorrindo. O sorriso
esvai-se rapidamente. Começa a mais longa subida de todo o percurso dos 85 km.
Mais coisa, menos coisa, e até ao km 27, nada mais teremos do que subidas,
subidinhas, subidonas, escadas, escadinhas e escadões. É também neste momento
que começo a ver a Mariana a afastar-se, a bom ritmo, e inicio assim a minha
jornada a solo.
By night…
O CP1 em Fanal ao km 13 faz-me recuar no tempo. A noite, as
luzes, a tenda… tudo isto me remete para Portalegre e para o UTSM há um ano.
Boas recordações! Misturam-se os atletas das duas provas, recarrego energias e
sigo caminho.
Seguem-se muitas horas de noite escura, sem estrelas e muito
nevoeiro. Temperatura amena. Silêncio absoluto. De quando em vez alguém passa
por mim. Vejo uma luz vermelha traseira a piscar. Vejo ao fundo um frontal quando
me volto para trás. Gosto disto. Adoro isto. E não… não tenho medo.
O Paulo Pires ultrapassa-me. Trocamos algumas palavras. E
assim vai acontecendo ao longo da prova. Os amigos dos 115 km, que sobem e
descem mais do que eu que faço os 85, sempre retomam ao trilho que sigo e dão-me “palmadinhas nas costas”.
O João Mota cruzou-se comigo 4 vezes. O Didier e o Ricardo
Belchior por duas vezes se cruzaram no meu caminho. Da primeira vez acharam que
não chegaria ao fim, disseram-me depois. Na segunda ficaram surpreendidos por
me ver correr como se estivesse na Corrida do Sporting, num longo estradão a
cerca de 15 km da meta. Escuso de esclarecer que isto nada tem de grandioso, pois todos sabem que corro a 6'/km em estrada. O Ricardo Diez, Paulo Picão e Pedro Lizardo
apanharam-me num trilho em single track, enquanto me debatia com o sono que
quase me atirava para um qualquer arbusto. Como me sabia bem ver caras amigas, sorrisos
conhecidos e palavras de incentivo!
Por diversas vezes me lembrei da crónica do José Guimarães,
que correu os 115 km do MIUT em 2013, acompanhado do Miguel Pereira. Fizeram a
prova juntos. Recordo-me do Zé fazer referência a um provérbio japonês que nos
diz “ao lado do teu amigo, nenhum caminho será longo”. Não tive a companhia
física desse amigo de que nos fala o provérbio japonês. Tive-a à distância de
várias dezenas de mensagens escritas e palavras trocadas. "Onde estás, Susana?", perguntava-me. “Vais agora subir X metros”. “O declive é de Y%, Susana” . “Já fizeste a parte
mais difícil”. “Força!”. “Tenho orgulho em ti!”. Rui, és esse amigo do provérbio e muito mais, e sabes lá como foste importante para que conseguisse caminhar e correr até
ao fim!
O “Olá!” para a câmara
e a subida ao Pico Ruivo
Depois de sair da Encumeada, iniciava a subida ao Pico
Ruivo. Passo por um cameraman que
pensava pertencer à organização. Quase sem fôlego, cumprimento-o com um “olá”
arrastado, como sempre faço quando vejo alguém a fotografar, a filmar, a
trabalhar nos abastecimentos e fora deles. Mais tarde viria a perceber que
afinal se tratava de uma câmara da RTP1, quando, falando com os meus pais
algures a meio do percurso para os tranquilizar, me disseram que me tinham
visto na TV. Ficaram seguramente mais tranquilos depois de terem visto a
esclarecedora reportagem!
A subida ao Pico Ruivo remeteu-me novamente para o UTSM.
Estava a revisitar a subida a Marvão com a agravante de a subir não 4, mas sim
435 vezes! Há horas que tinha saído da Encumeada. 10 km apenas separavam os
dois pontos. Estava exausta e as escadas não me davam tréguas. As escadas
tortuosas, inclinadas, bicudas, redondas, baixas, altas. Escadas de toda a
forma! As pedras e o cascalho. Tudo tornava a progressão lenta e demasiado
difícil. Quando atingi finalmente o Pico Ruivo, o ponto mais alto da ilha,
estava decidida a abandonar a prova. 48 km tinham sido percorridos. “Vou ficar
por aqui”, disse, vendo o Luís Trindade e o Nelson Diogo chegarem. “Porquê?”,
respondeu o Luís. “Estou exausta. Tenho dores.”, respondo de novo. “E eu não
tenho dores, queres ver?”, questionou indignado. Aguardei 5 minutos e senti-me
envergonhada. Afinal… o Luís e o Nelson acabavam de chegar ao Pico Ruivo depois
de subir desde o Curral das Freiras. Eu havia subido dos 1.002 metros aos 1.748
metros. Os atletas dos 115 km haviam descido dos 1.002 aos 648 m, para depois
voltarem a subir aos 1.748 metros. “Estás com dores, Susana?”, pensei para comigo.
“Tem mas é juízo e mete-te a caminho”. E segui caminho.
Como é linda a
Madeira!
Abençoado Luís pelo seu pragmatismo e assertividade, porque percorri
um dos mais fantásticos caminhos de todo o percurso - o troço que separava o
Pico Ruivo do Pico do Areeiro. Estou mergulhada naquele que é o maciço
montanhoso central da Madeira. Não sabia que esta Madeira existia. Desconhecia
por completo e é a terceira vez que visito a ilha. Vales profundos, declives
escarpados. Escadas de todas as formas e feitios onde mal cabe o meu pé de
tamanho 35. Túneis. “Susana, olha para a frente, sempre em frente”, pensei. Luís
Sommer Ribeiro, lembrei-me de ti e das tuas vertigens. Eu, que não as tenho,
arrepiei e senti as pernas tremer. Mas quanta beleza. Quanta grandeza. E é
nosso!
Seguia tranquilamente, apreciando tudo o que me rodeava.
Tinha saído do Pico Ruivo com a certeza de que a minha prova terminaria no posto
de controlo seguinte, no Pico do Areeiro. Era impossível cumprir com o tempo
limite das 16 horas. Tinha 7 km por fazer e pouco mais de 1 hora e meia para os
completar. Quando chego já perto das 17 horas ao Pico do Areeiro, passo o chip
no controle e anuncio que venho já fora do tempo. “Ainda nada nos disseram no
sentido de barrar os atletas, pelo que pode continuar”, respondeu uma menina da
organização. Sou envolvida por um misto de angústia e alívio e decido
continuar. Só faltam 30 km. Os mais fáceis, diziam. O que tenho como certo é
que os 30 km que se seguiram foram uma das mais fantásticas experiências da
minha vida.
Alucinando…
Começava a cair a noite. A minha segunda noite em prova. Estou
acordada desde as 9 da manhã de 6.ª feira. 34 horas, portanto. O que podemos
esperar da nossa cabeça nestas condições? Asneiras, claro!
Nunca fumei. Tirando 2 ou 3 cigarros para mostrar que era
crescida, nunca fumei coisa alguma. Agora sei que para alucinar não é preciso
nenhuma substância alucinogénica. Basta andar há mais de 20 horas sozinha a monte
e o sucesso é garantido.
Até chegar à meta ainda tinha que passar por 4 postos de
controlo e por uma diversidade imensa de tipologia de percursos e paisagens.
Depois do abastecimento em Lamaceiros, aos 66 km, segui mais energizada para aquela
que pensava ser a parte mais fácil de toda a prova. A noite começa a cair e
consigo cai também o nevoeiro. Ligo o frontal. Não chega. Ligo o segundo frontal
e levo-o comigo na mão, preso ao bastão, como se de uma lanterna se tratasse.
Não vejo as fitas de marcação à distância. Só quando estou
bem perto delas. Por cima da minha cabeça apenas uma mancha de luz que se
dispersa no nevoeiro. Sigo com prudência porque não consigo perceber que
caminho tomar com a devida antecipação.
Entro novamente na floresta e deparo-me com árvores que
parece que foram pintadas. Os ramos transformam-se em braços. A folhagem
desenha caras de bruxas. Vejo crucifixos e assusto-me. No meio dos arbustos vejo olhinhos vermelhos –
estes sei que são reais e pertencerão a um qualquer “bichinho”. Oiço coisas.
Vejo caras. Estou a alucinar. Estive perto de chegar a uma situação de pânico,
creio. O telemóvel dá sinal de mensagem. A Ana Guimarães está do lado de lá.
Ligo-lhe e peço que fale comigo, que diga coisas divertidas. E assim vamos nós,
primeiro as duas, depois com o Pedro Quina e o Ricardo Arraias, numa verdadeira
“conference call”, que me arrastou para fora dali e para longe do filme de terror que
cheguei acreditar estar a viver. Horas depois, já depois de ter cruzado a meta,
disseram-me que era normal. Contaram-me histórias de alucinações do mais
absurdo que há. Nessa altura sorri e acreditei que afinal era só mais uma pessoa
saudável no meio de outros loucos saudáveis. Felizmente não tenho que me sentar
no divã de um qualquer psiquiatra!
Quando penso que a
partir daquele momento só pode melhorar, vejo-me a descer um trilho técnico que
me faz estremecer. Quando o termino, cruzo dois elementos da organização que me
alertam que agora só tenho que subir “aquilo ali ao fundo”. A meta está do lado
de lá.
Sinto que tenho diante de mim o Monte Evereste. Nunca lá estive, mas acredito verdadeiramente que naquela noite o Evereste aterrou na Madeira. Se estrelas houvesse naquela noite, teria tocado nelas. Só me sentia a subir, a subir, e a subir.
O piso e falta de visibilidade atrasam a progressão. Perco o Norte. Começo a ficar irritada pois sinto-me como se estivesse às voltas no monte. Começo a soltar palavras menos dignas de uma menina. Estou só naquele mundo perdido. "Mas onde estão todos?", penso.
O piso e falta de visibilidade atrasam a progressão. Perco o Norte. Começo a ficar irritada pois sinto-me como se estivesse às voltas no monte. Começo a soltar palavras menos dignas de uma menina. Estou só naquele mundo perdido. "Mas onde estão todos?", penso.
Depois de muitas voltas e caça às fitas de marcação, encontro finalmente o
marco geodésico. Só nessa altura sossego, pois sei que se precisar de ajuda,
ali saberei comunicar onde estou. Ao longe ouve-se música que penso ser a da
meta. Uns momentos depois esvai-se de novo. Estou novamente às voltas e não encontro o momento em que inicia a descida. Quando começo finalmente a descer verifico que ainda estou a chegar ao posto de controlo das Fonduras. Depois disso, pedra e mais pedra a fazer lembrar a Serra da Freita onde nunca estive, seguindo-se mais
uma levada, até à Portelinha. Junto à levada vi fantasmas. Afinal eram apenas os lençóis que esvoaçavam no estendal de casas próximas. Muitos fantasmas vi eu! Alucinando, claro!
Mais uma descidita. Começa a chover. O vento sopra forte. Estou a 4 km da meta e
agora sim, tropeçando e escorregando pelas pedras que se atravessam no meu
caminho, acredito que vou chegar ao fim, antes das 26 horas.
Epílogo
Acredito verdadeiramente que depois do que vivi saí muito
mais forte para enfrentar todos os outros desafios que a vida me colocará.
E é talvez por isso que procuro a montanha.
Porque me dá
prazer. Porque me faz crescer. Porque me ensina a ter prudência, mas também
ousadia. Porque é mais eficaz (e maravilhosa) do que todas as formações em sala sobre
valorização pessoal, gestão de stress, liderança (de nós próprios) e outras
coisas tais, que se possam frequentar. Não há melhor coach do que a montanha.
Entendam este texto como um testemunho verdadeiro. Não se trata de uma auto-biografia de 26 horas em jeito de auto-comiseração.
Amanhã é 5.ª feira, e partiria de novo pelas 19 horas para o Funchal, tal como aconteceu na semana passada. Estaria novamente com todos os amigos que partilharam destas alegrias e receios pelos trilhos da Madeira. Alinharia de novo na partida e, se assim estivesse destinado, chegaria à meta pela 1h42 de domingo.