Choveram muitas, sim.
Choveram estrelas em forma de granizo.
E choveram estrelas em forma de gente, gente que cortou a meta dos 100 km depois de mais de 6.000 metros de desnível acumulado.
Foram mais de duas centenas os atletas que às 00 horas de dia 18 largaram ao som do tiro de partida, em busca de uma medalha de cortiça.
Destes 200, alinharam à partida 22 senhoras.
Umas eram craques, outras supersónicas, umas assim-assim e depois… depois havia eu: a caracoleta dos trilhos.
Como vim parar aqui?!
“100?! Nem pensar!”, disse eu quando terminei os 50 km de Sesimbra em abril. Passados três dias fiz o upgrade da inscrição nos 42 para os 100 km em São Mamede. Está visto que sou uma “miúda” carregada de fortes convicções.
Só podia naturalmente aventurar-me na estreia dos três dígitos com a garantia de que seria (bem) acompanhada. Joaquim Adelino e Luís Miguel… Escolta até aos 100 assegurada!
18 de maio. Chegou o dia. Estou moderadamente tranquila durante toda a manhã e tarde. Depois das 21 horas instala-se a ansiedade. Eu que faço sempre muito barulho, sento-me encostadinha na parede do corredor do pavilhão de onde partiríamos daí a poucas horas. “Estás pálida, Susana”, dizem alguns amigos. Acho que sim, que estava. Medo! O que serão 100 km?! Na dúvida, o melhor é ir “espreitar” como é.
Começa a loucura
Noite escura. A única iluminação é a dos frontais de centenas de atletas que correm pela Serra de São Mamede dentro. Logo nos primeiros quilómetros da prova oiço os guizos das ovelhas. Penso na Inês e no Diogo e, instantaneamente, a cabeça começa a traulitar “havia um pastorinho, que andava a pastorar, saiu de sua casa e pôs-se a cantar (…)”. Esta canção infantil viria a ressurgir noutros pontos da prova, a cada vez que era confrontada com o chocalho de guizos. Felizmente, não tive o azar do meu amigo Pedro Quina, que se deparou com 150 cabras e o respetivo cão-pastor que lhe cortaram o caminho!
A subida às antenas e a chegada ao PAC 2
Passado o primeiro PAC (Posto de Abastecimento e Controlo, para quem não conhece a sigla), iniciava uma das mais temíveis subidas desta prova: a subida às antenas. Teríamos que vencer um desnível de cerca de 1.000 metros ao longo de 10 km. Senti que precisaria de um isotónico especial. Fui buscar o ipod – único momento da prova em que o fiz – e, já com as mãos geladas, ofereci-me o piano de Ludovico Einaudi.
Apesar de dura, confesso que foi das experiências mais emocionantes destes 100 km. Nem lua, nem estrelas para nos iluminar o caminho. A noite cerrada, o nevoeiro, o vento, a luz do frontal, eu e Einaudi. A cada vez que o Ludovico tocava uma tecla, eu espetava vigorosamente os bastões no solo. Foi um daqueles momentos a que podemos chamar de genial!
Depois de muito subir, chegamos finalmente ao ponto mais alto deste nosso Portugal a Sul do Tejo. No meu caso, 5h06m depois da partida. O frio e vento são terríficos e alguns atletas estão em dificuldade. Tento aquecer-me como posso e vou para junto de uma fogueirinha. Saí de lá a cheirar a borralho, mas quente.
Iniciamos depois um lindo trilho em “single track”, que se prolonga serra abaixo. Quando o termino, já tenho o aviso da manhã a querer nascer. Aquela luz que não se sabe muito bem se está o dia a começar ou a terminar. Aquele azulinho acizentado.
Low battery. Your system will shut down in 5 seconds.
São 7h22. Estou há mais de 7 horas a monte. Não dormi. Mordo um figo seco. Estou verdadeiramente a entrar em queda. Apercebendo-se disso, os companheiros de corrida, Joaquim e Luís, falam comigo, mas eu já nem respondo. Limito-me a esboçar sorrisos. Continuo a correr mas já não estou ali. Avisto a Barragem da Apartadura. Esforço-me para contemplar a sua beleza. “E se desse um mergulho?”, penso. Teria acordado, isso é certo. Só mais um pouco e chego ao PAC 4. “Café?”, pergunta um dos elementos da organização. “Triplo”, respondo. Não sei o que tinha aquele café. Não sei se era triplo. Mas aquele café ressuscitou-me. Voltou a Susana.
Chegar a Marvão
Depois da meia bifana no PAC 5 (Porto de Espada) começa mais uma subida. Lá em cima, olhamos para a direita e vemos Marvão ao fundo. Lindo Marvão. Rapidamente deixou de o ser! Tão perto, mas tão longe. Ziguezagueamos, subimos, descemos. Subimos de novo. Contornamos o monte que eleva Marvão e voltamos a descer. Para depois o subir. Senhores organizadores… Irei descobrir quem desenhou este troço do percurso, saber onde mora, descobrir a sua viatura, furar-lhe os 4 pneus e desenhar um “S” de “Susana” no “capot”. Talvez seja presa por isso, mas será um delito praticado com muita convicção!
Enfim, talvez lhes perdoe, porque depois do pesadelo da subida, entro finalmente em Marvão, recebo 100 sorrisos de vários membros da organização (curiosamente, quando os questiono, nenhum é responsável pelo desenho do percurso) e uma sopinha que me aconchegou o estômago que, há muito, reclamava por algo mais do que figos secos.
É também em Marvão que agarro pela primeira vez no telemóvel. A alegria era tanta que anunciei a chegada aos 60 na minha página pessoal do FB. Desconhecia o que me esperava, mas assegurei que chegaria ao fim. Achava eu que a subida a Marvão seria a maior provação do desafio! Nesta altura apercebo-me, também, do reboliço que vai no meu mural. Dezenas de amigos acompanhavam-me a par e passo e “gritavam” palavras de incentivo. Não esquecerei estes gestos. Poderia esquecer Marvão, mas isto não.
A caminho do km 70
Deixamos Marvão. Para além da sopinha, aproveitei também para mudar de vestido. Retirei o equipamento estilo “casual” e adotei o estilo “cerimónia”. 60 quilómetros já estão, mas se ainda tenho 40 pela frente, tenho mesmo que usar o equipamento da Frostie. Tenho que descobrir a Anna Frost que há em mim. Pode ser ilusão minha, é certo, mas aquele equipamento dá-me outro ânimo.
Passamos Portagem e, uma vez mais, perco-me em pensamentos com a Inês e Diogo. Há um ano atrás, um pouco menos, andavam ali a saltar para dentro da piscina fluvial. Mergulho, sai, mergulho, sai. Não sei se lá consigo voltar tão cedo. Marvão fica mesmo acima!
Deparo-me com a “minha” estrada. Adoro aquela estrada. Ladeada de árvores de ambos os lados, com os troncos pintados. Infelizmente, só gozo metade da sua extensão. Esta gente não quer nada com alcatrão e rapidamente nos põe a correr em cima de pedra. Toca a voltar para a esquerda! Esperam-nos mais umas subidinhas. E granizo, muito granizo.
No final de mais uma subida, olho para trás. Lá muito ao fundo, a serra com as antenas ao topo. Estive lá há algumas horas atrás. Em frente, Marvão, que acabei de subir 34 vezes. “O que me espera agora?!”, penso.
Chovem almôndegas em Portalegre
Não eram almôndegas, mas era granizo do tamanho de almôndegas. Batem-me nas pernas, agora descobertas com o equipamento Frostie. Reclamo com toda a energia que ainda me resta, mas São Pedro não me dá ouvidos. Felizmente estamos a poucos quilómetros do PAC seguinte – Carreiras. Ao chegarmos, abrigamo-nos debaixo da tenda. Vários atletas chegam, entretanto, e dizem que ficam por ali. “Como é a nossa vida?”, pergunto ao Joaquim e Luis. “Continuamos, claro, foi para isso que aqui viemos”, responde convictamente o Luís. Se estivesse só na prova, tenho a certeza que teria ficado por ali. Não teria tido forças para continuar.
E seguimos rumo a Castelo de Vide.
O sol espreita mas… granizo de novo!
Estou gelada mas, finalmente, a chuva parou e o sol espreita. Tento correr um pouco mais e consigo secar o equipamento. Continua o sobe e desce. E vem uma nuvem. Uma nuvem carregada de pedras. Desaba novamente uma chuva de granizo sobre nós e corro como se não houvesse amanhã. Corro e choro, confesso. Estava desesperada. Ainda faltava tanto! Não conseguiria suportar o resto se São Pedro continuasse a despejar almôndegas em cima de mim.
Pela primeira vez agasalho-me com a manta de sobrevivência. Seria a única forma de me aquecer. Bebo um chá a escaldar no PAC 8, Castelo de Vide. Está quase. Vamos lá para o quase que falta.
Lama não foi muita, até que...
Apesar da chuva intensa dos últimos dias, São Mamede não nos ofereceu muita lama. Depois de um longo estradão em terra batida, em que me debatia com as pernas porque se recusavam a correr num terreno perfeito para o fazer, surge um desvio para a esquerda. Avanço seguindo as marcações. O terreno parecia sequinho. Mas não estava. Enterro um sapato. Para o conseguir tirar, enterro o outro. Saí de lá (calçada, felizmente) com 2 kg de lama em cada pé. Precisaria de correr outros 100 km para soltar a lama que ficou agarrada aos ténis. A lavagem é também uma boa opção!
Ermida da Penha, 95 km
Já está quase, mas apetece-me ficar sentada por aqui. Quanta simpatia com que somos recebidos! Que animação! Sugeriram que bebesse uma cerveja. Eu até teria bebido e esquecido que odeio cevada fermentada, mas estou certa que cairia redonda no chão e teriam que me carregar até à meta. Confesso que naquele momento cheguei a pensar que era uma boa solução para o problema que ainda tinha pela frente… 5 kms. E o sol a pôr-se.
Deixei os elementos da organização com tristeza e… e desci como pude os 236 degraus que me apareceram pela frente. Engraçadinhos, muito engraçadinhos estes organizadores. Reitero a história do “S” no “capot” que escrevi acima. Mas a malandragem não terminava aí. O lema desta prova é seguramente ”descubra a forma mais longa e penosa para chegar do ponto A ao ponto B”. O estádio ali tão perto, mas… ziguezagueamos sem fim e perco o norte.
100 km, que são 102 ou 103 km
O meu Garmin perdeu o pio há muito. Não sei quantos quilómetros levo ao certo, mas já vejo os holofotes no estádio. Sim, o sol já se pôs. Teria gostado de chegar antes de desaparecer. Quem sabe da próxima vez!
Entramos no estádio – eu e o Luís, pois o Joaquim teve que terminar aos 90 km com fortes dores – e sorrio. Faço a festa e respiro profundamente. Terminou. Consegui.
O balanço
Estive 21h30 por entre vales e montes para completar os meus primeiros 100 km. Teria gostado de ter conseguido correr mais. Caminhei muito, muito mesmo. Subi, desci. Sorri, chorei. Acreditei, mas também pensei que não conseguiria. Quis deixar cair o corpo nos bancos dos PACs e deixar-me ficar por ali. Mas quis mais voltar a correr. Tive frio. Nunca tive calor. Tive sono. Senti genica. Quando anunciaram a vencedora feminina do UTSM – Júlia Conceição – eu estava algures entre o km 60 e o 70. Levaria ainda mais 8 horas para os terminar. Fico absolutamente maravilhada com estas atletas. Completar aqueles 100 km em 13h20 é para gente de outro planeta!
Day after
Deixámos Portalegre para trás. “Com tanta terra aqui a direito foram espetar connosco lá no meio da serra”, diz o Joaquim Adelino. Gargalhada geral.
Chego a casa com duas medalhas. Tive que fazer um choradinho junto da meta para trazer duas. Desta vez tinha que pôr uma ao pescoço da Inês e outra ao pescoço do Diogo. Não havia espaço para partilhas. À minha espera estão vários desenhos. Um deles, da autoria da Inês, mostra uma mamã corredora. “A minha mãe correu 100 km”, escreveu ela.
Sem comentários:
Enviar um comentário