Uma peregrinação (do latim per agros, isto
é, pelos campos) é uma jornada realizada por um devoto de uma dada
religião a um lugar considerado sagrado. Com as devidas adaptações, fui
peregrina na Serra da Freita. A família representava a minha religião. O lugar
sagrado seria a meta, 65 km e muitas horas depois, mergulhada, literalmente, na
montanha que podia ser o paraíso que dizem existir depois de sairmos deste
mundo. Um sacrifício muito mais prazeroso do que penoso para mim, como sabem.
Acabei de chegar ao abastecimento
da Lomba, depois de um maravilhoso mergulho na cascata que o antecede. Pousei a
mochila. Mergulhei. Nadei até à cascata. “Caramba, como sou uma pessoa com
sorte”, pensei. Demorei-me um pouco. Revigorada, subi os metros que faltavam
até ao abastecimento, onde sou simpaticamente recebida. Enquanto mordo meia
bifana, surge o primeiro atleta dos 100 km, de seu nome Marcolino Veríssimo.
Felicito-o e pergunto: “mas não tomaste banho ali em baixo, pois não?”. O
Marcolino responde que sim, e antes também, e que não prescindiria dos banhos
que já leva consigo. Sorri e rapidamente caiu por terra a teoria que os “cá de
trás” é que se divertem e desfrutam dos trilhos. Afinal, os supersónicos também
mergulham. Saiu do abastecimento antes de mim. E eu segui depois o meu caminho.
Faltavam 22 km e a fantástica, mas também penosa, subida da Lomba.
Cerca de 11 horas antes, o José Moutinho anunciava a largada para as provas dos 65 e 100 Km, lá longe, em
baixo, em Arouca. Uma multidão de gente e garanto desde logo o último lugar. A
Júlia Conceição vem ter comigo – logo aqui penalizei fortemente o meu tempo de
chegada à meta - e dá-me um beijo de boa sorte. Continuo pela estrada de
alcatrão pensando que o mundo anda mesmo todo trocado – ora então a
super-atleta vem ter comigo e não o contrário? Obrigada, Júlia! És muito mais
querida que a Querida Júlia da TV (e não preciso de conhecer a outra
pessoalmente).
Descobri como pode ser diferente
a Freita, consoante o São Pedro nos brinde com chuva ou sol. Há um ano, a chuva
e as pedras molhadas haviam sido o meu maior calvário. Este ano, não perdi um
único charco, tanque, ribeiro, “Sr. Teixeira” ou cascata. Pasmem-se: consegui
deitar-me numa levada e garantir um banho quase integral!
Sempre na cauda do pelotão (só
passei para o brilhante antepenúltimo lugar, depois dos 35 km), fui partilhando
os primeiros quilómetros com a Patrícia, que prescindiu de correr como tão bem
sabe fazer, para me acompanhar. Só em Manhouce, já com 35 km de prova, consegui
que seguisse o seu caminho. O passo seguinte era a ameaça com os meus bastões,
pelo que creio que se pôs em sentido e percebeu que posso ser perigosa.
Mas antes disso, antes de Manhouce,
da sua fantástica equipa de voluntários (bem vistas as coisas, não consigo
indicar voluntários que não o tenham sido!), do tomate com sal e do café da Carmen,
antes disso, escrevia eu, tínhamos vivido 35 km de trilhos variados, marcados
por muitas subidas, muitas pedras, as pedras que tanto gosto e que dariam um
lindo padrão para vestidos, as pedras que devem ter um nome que desconheço, mas
que são em tons de prata e dourado, lindas pedras, e ainda outras pedras… as
pedras da Besta.
Não. Não fui eu quem chamou besta
à Besta. De resto, foram 65 km sem palavras indignas, sem insultos à montanha
ou a mim própria, sem questionar o que ali tinha ido fazer. Creio que os
Acordos de Paz se deveriam fazer na Serra da Freita. Impossível sair dali sem
uma desmesurada vontade de praticar bem e melhor. Impossível.
Mas falava eu das pedras da Besta.
Levava comigo a grande vontade de a subir. Tantas perguntas fiz ao Rui sobre a
Besta. “E tenho altura de perna para subir?”, “e escorrega?”, “e posso cair?”,
“e está muito exposta ao sol”?, “e se (…)?”. Obtive todas as respostas, 1 hora
depois de iniciar a sua subida. Repito. Sessenta minutos para percorrer 1,5 km,
pedra após pedra, usando todas as partes do meu corpo – como gostaria de ter um
registo fotográfico da minha elevação numa delas, demasiado alta para o curto
tamanho das minhas pernas! Se na meta me tivessem apresentado um livro de
dedicatórias, teria pedido aos confrades da Confraria Trotamontes que tanto
gostam de surpreender todos os anos com as suas inovações, que levassem o que
quisessem do UTSF 65 km, mas não a Besta! Deixem-me subir a Besta de novo!
Tinha sido avisada que a subida
da Lomba me cansaria mais do que a Besta. Cansou sim, é verdade. Fazendo
algumas pausas pelo caminho, ia vendo pela frente o que me faltava, espreitando
atrás o que já havia percorrido. Estou cansada, mas o que vejo é tão bonito! O
telemóvel dá sinal de alerta. A Ivete do lado de lá, chegando no exato momento
para me dar o empurrão que falta. Logo a seguir, chega o segundo atleta,
literalmente de elite, o João Oliveira. Pergunto-lhe se é mais difícil do que a
Spartathlon e deixa-me com um sorriso, subindo, correndo, Lomba acima.
Depois disso, o caminho começa a
ser familiar, com o PR7 debaixo dos pés, a Mizarela desta vez lá longe à
esquerda, as vertigens que não tenho habitualmente a darem o ar da sua graça, o
trilho que me conduzirá ao Merujal e à sua casa de pedra. Este ano a casa de
pedra não representa a meta, mas recebo os aplausos simpáticos de quem lá está,
e que me felicita como se fosse a primeira classificada de qualquer coisa
fantástica. A medalha e mais aplausos viriam depois, pelas mãos e sorriso da fantástica Flor, em Arouca, 13 km adiante.
Senti saudade dos Incas, dos três
pinheiros e depois dos Aztecas, confesso. Mas não eram saudades que quisesse
matar. A saudade sabe bem e o UTSF esteve perfeito assim. E
ficaram as duas civilizações e as três árvores alinhadas ao topo do monte registadas
nas memórias de 2014.
No Merujal recarrego baterias e
cruzo-me com um casal que repousa no parque de campismo. Haviam feito a
caminhada, esclareceram. Respondo que também fui caminheira, apenas numa
distância um pouco mais longa. Coloco o frontal para o que falta, uma viagem
com o sol a pôr-se, e os contornos na montanha com definição HD.
Pelo caminho, fui recordando as
histórias que já nos escreveram o Rui Pinho e o João Paulo Meixedo sobre a
Serra da Freita. As palavras a fazerem sentido. As experiências relatadas agora
vividas por mim. Lembrei-me também do texto de um autor cujo nome não me
recordava, e que agora sei tratar-se do Miguel Serradas Duarte, escrito em
2013, intitulado “Eu não fiz a Freita, a Freita fez-me a mim”. Não sei o que
tinha o Miguel em mente, mas eu não escolheria melhor título para esta minha
aventura.
Diz-nos o dicionário da língua portuguesa que fazer significa, entre outras coisas, “dar existência” e “levar alguém a perceber ou sentir algo”. Pois bem. A Serra da Freita deixou em mim um conjunto de sentimentos bons, de sensação de esvaziamento do que não faz bem, de agradecimento. Creio ter sido das minhas mais fantásticas “peregrinações” fora dos “palcos” habituais para o efeito (que nunca usei, confesso), e com a melhor das motivações, que encontrei logo na fase inicial do meu percurso, na manhã de dia 27 de junho.
Mãe, mamã, Zezinha, sendo difícil, porque sou realmente uma “bem equipada mas fraca atleta”, chegar à meta nunca foi tão fácil, por te saber curada.
Diz-nos o dicionário da língua portuguesa que fazer significa, entre outras coisas, “dar existência” e “levar alguém a perceber ou sentir algo”. Pois bem. A Serra da Freita deixou em mim um conjunto de sentimentos bons, de sensação de esvaziamento do que não faz bem, de agradecimento. Creio ter sido das minhas mais fantásticas “peregrinações” fora dos “palcos” habituais para o efeito (que nunca usei, confesso), e com a melhor das motivações, que encontrei logo na fase inicial do meu percurso, na manhã de dia 27 de junho.
Mãe, mamã, Zezinha, sendo difícil, porque sou realmente uma “bem equipada mas fraca atleta”, chegar à meta nunca foi tão fácil, por te saber curada.
Parabéns mais uma vez e foi mesmo o relato que faltava para me decidir a ir no próximo ano, não posso de todo faltar :)
ResponderEliminarExcelente relato (mais um) :)
Beijinho
Boa decisão.
EliminarObrigada, António. Estou certa que irás adorar o UTSF e que voarás sobre aquelas pedras! Beijinho!
EliminarLindo texto Susana.
ResponderEliminarObrigada, António! :) Beijinho!
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