quarta-feira, 1 de julho de 2015

Serra da Freita depois do Pôr-do-Sol




Uma peregrinação (do latim per agros, isto é, pelos campos) é uma jornada realizada por um devoto de uma dada religião a um lugar considerado sagrado. Com as devidas adaptações, fui peregrina na Serra da Freita. A família representava a minha religião. O lugar sagrado seria a meta, 65 km e muitas horas depois, mergulhada, literalmente, na montanha que podia ser o paraíso que dizem existir depois de sairmos deste mundo. Um sacrifício muito mais prazeroso do que penoso para mim, como sabem.

Acabei de chegar ao abastecimento da Lomba, depois de um maravilhoso mergulho na cascata que o antecede. Pousei a mochila. Mergulhei. Nadei até à cascata. “Caramba, como sou uma pessoa com sorte”, pensei. Demorei-me um pouco. Revigorada, subi os metros que faltavam até ao abastecimento, onde sou simpaticamente recebida. Enquanto mordo meia bifana, surge o primeiro atleta dos 100 km, de seu nome Marcolino Veríssimo. Felicito-o e pergunto: “mas não tomaste banho ali em baixo, pois não?”. O Marcolino responde que sim, e antes também, e que não prescindiria dos banhos que já leva consigo. Sorri e rapidamente caiu por terra a teoria que os “cá de trás” é que se divertem e desfrutam dos trilhos. Afinal, os supersónicos também mergulham. Saiu do abastecimento antes de mim. E eu segui depois o meu caminho. Faltavam 22 km e a fantástica, mas também penosa, subida da Lomba.

Cerca de 11 horas antes, o José Moutinho anunciava a largada para as provas dos 65 e 100 Km, lá longe, em baixo, em Arouca. Uma multidão de gente e garanto desde logo o último lugar. A Júlia Conceição vem ter comigo – logo aqui penalizei fortemente o meu tempo de chegada à meta - e dá-me um beijo de boa sorte. Continuo pela estrada de alcatrão pensando que o mundo anda mesmo todo trocado – ora então a super-atleta vem ter comigo e não o contrário? Obrigada, Júlia! És muito mais querida que a Querida Júlia da TV (e não preciso de conhecer a outra pessoalmente).

Descobri como pode ser diferente a Freita, consoante o São Pedro nos brinde com chuva ou sol. Há um ano, a chuva e as pedras molhadas haviam sido o meu maior calvário. Este ano, não perdi um único charco, tanque, ribeiro, “Sr. Teixeira” ou cascata. Pasmem-se: consegui deitar-me numa levada e garantir um banho quase integral!

Sempre na cauda do pelotão (só passei para o brilhante antepenúltimo lugar, depois dos 35 km), fui partilhando os primeiros quilómetros com a Patrícia, que prescindiu de correr como tão bem sabe fazer, para me acompanhar. Só em Manhouce, já com 35 km de prova, consegui que seguisse o seu caminho. O passo seguinte era a ameaça com os meus bastões, pelo que creio que se pôs em sentido e percebeu que posso ser perigosa.

Mas antes disso, antes de Manhouce, da sua fantástica equipa de voluntários (bem vistas as coisas, não consigo indicar voluntários que não o tenham sido!), do tomate com sal e do café da Carmen, antes disso, escrevia eu, tínhamos vivido 35 km de trilhos variados, marcados por muitas subidas, muitas pedras, as pedras que tanto gosto e que dariam um lindo padrão para vestidos, as pedras que devem ter um nome que desconheço, mas que são em tons de prata e dourado, lindas pedras, e ainda outras pedras… as pedras da Besta.

Não. Não fui eu quem chamou besta à Besta. De resto, foram 65 km sem palavras indignas, sem insultos à montanha ou a mim própria, sem questionar o que ali tinha ido fazer. Creio que os Acordos de Paz se deveriam fazer na Serra da Freita. Impossível sair dali sem uma desmesurada vontade de praticar bem e melhor. Impossível.

Mas falava eu das pedras da Besta. Levava comigo a grande vontade de a subir. Tantas perguntas fiz ao Rui sobre a Besta. “E tenho altura de perna para subir?”, “e escorrega?”, “e posso cair?”, “e está muito exposta ao sol”?, “e se (…)?”. Obtive todas as respostas, 1 hora depois de iniciar a sua subida. Repito. Sessenta minutos para percorrer 1,5 km, pedra após pedra, usando todas as partes do meu corpo – como gostaria de ter um registo fotográfico da minha elevação numa delas, demasiado alta para o curto tamanho das minhas pernas! Se na meta me tivessem apresentado um livro de dedicatórias, teria pedido aos confrades da Confraria Trotamontes que tanto gostam de surpreender todos os anos com as suas inovações, que levassem o que quisessem do UTSF 65 km, mas não a Besta! Deixem-me subir a Besta de novo!




Tinha sido avisada que a subida da Lomba me cansaria mais do que a Besta. Cansou sim, é verdade. Fazendo algumas pausas pelo caminho, ia vendo pela frente o que me faltava, espreitando atrás o que já havia percorrido. Estou cansada, mas o que vejo é tão bonito! O telemóvel dá sinal de alerta. A Ivete do lado de lá, chegando no exato momento para me dar o empurrão que falta. Logo a seguir, chega o segundo atleta, literalmente de elite, o João Oliveira. Pergunto-lhe se é mais difícil do que a Spartathlon e deixa-me com um sorriso, subindo, correndo, Lomba acima.

Depois disso, o caminho começa a ser familiar, com o PR7 debaixo dos pés, a Mizarela desta vez lá longe à esquerda, as vertigens que não tenho habitualmente a darem o ar da sua graça, o trilho que me conduzirá ao Merujal e à sua casa de pedra. Este ano a casa de pedra não representa a meta, mas recebo os aplausos simpáticos de quem lá está, e que me felicita como se fosse a primeira classificada de qualquer coisa fantástica. A medalha e mais aplausos viriam depois, pelas mãos e sorriso da fantástica Flor, em Arouca, 13 km adiante.

Senti saudade dos Incas, dos três pinheiros e depois dos Aztecas, confesso. Mas não eram saudades que quisesse matar. A saudade sabe bem e o UTSF esteve perfeito assim. E ficaram as duas civilizações e as três árvores alinhadas ao topo do monte registadas nas memórias de 2014.

No Merujal recarrego baterias e cruzo-me com um casal que repousa no parque de campismo. Haviam feito a caminhada, esclareceram. Respondo que também fui caminheira, apenas numa distância um pouco mais longa. Coloco o frontal para o que falta, uma viagem com o sol a pôr-se, e os contornos na montanha com definição HD.

Pelo caminho, fui recordando as histórias que já nos escreveram o Rui Pinho e o João Paulo Meixedo sobre a Serra da Freita. As palavras a fazerem sentido. As experiências relatadas agora vividas por mim. Lembrei-me também do texto de um autor cujo nome não me recordava, e que agora sei tratar-se do Miguel Serradas Duarte, escrito em 2013, intitulado “Eu não fiz a Freita, a Freita fez-me a mim”. Não sei o que tinha o Miguel em mente, mas eu não escolheria melhor título para esta minha aventura.

Diz-nos o dicionário da língua portuguesa que fazer significa, entre outras coisas, “dar existência” e “levar alguém a perceber ou sentir algo”. Pois bem. A Serra da Freita deixou em mim um conjunto de sentimentos bons, de sensação de esvaziamento do que não faz bem, de agradecimento. Creio ter sido das minhas mais fantásticas “peregrinações” fora dos “palcos” habituais para o efeito (que nunca usei, confesso), e com a melhor das motivações, que encontrei logo na fase inicial do meu percurso, na manhã de dia 27 de junho.

Mãe, mamã, Zezinha, sendo difícil, porque sou realmente uma “bem equipada mas fraca atleta”, chegar à meta nunca foi tão fácil, por te saber curada.


5 comentários:

  1. Parabéns mais uma vez e foi mesmo o relato que faltava para me decidir a ir no próximo ano, não posso de todo faltar :)
    Excelente relato (mais um) :)
    Beijinho

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    1. Obrigada, António. Estou certa que irás adorar o UTSF e que voarás sobre aquelas pedras! Beijinho!

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