segunda-feira, 17 de junho de 2013
Crónica de uma vitória anunciada
Vitória: s.f. Ação ou efeito de vencer. Qualquer sucesso, êxito ou vantagem alcançada. Triunfo. (Do Lat. victoria)
Em vários momentos no sábado, debaixo de “60 ºC à sombra”, me lembrei das palavras que tinha partilhado no dia anterior.
Em vários momentos sonhei estar descalça, a pisar areia e a banhar-me nas águas do mar.
Mas tive o que havia desejado para mim naquele dia: cascalho, pedras e folhinhas. Assim como derreter ao sol. E banhar-me num dos muitos afluentes do Zêzere.
No sábado participei na segunda edição da prova Oh Meu Deus – Vila de Rei. E não a esquecerei.
Dureza…
Dois dias depois as emoções estão ainda à flor da pele. Foi duro, muito duro. Não sei se foi a prova mais dura que fiz. A verdade é que tenho ainda muito presente a aventura UTSM, com os seus 100 km e, claro, a subida a Marvão. Mas, uma coisa é certa. O meu corpo diz-me que sim. Os meus quadríceps dizem-me hoje que, no sábado, experenciei a prova mais dura até aqui.
Felizmente a mente humana tem a capacidade de eliminar seletivamente alguns registos. E, geralmente, tende a apagar os ficheiros menos bons, guardando apenas as boas recordações. Tal qual quando perdemos alguém de quem gostamos muito.
De Vila de Rei, só guardarei coisas boas.
O meu primeiro briefing
Pela primeira vez numa prova, decidi assistir ao briefing que a antecede. Cheguei a Vila de Rei na véspera e rumei ao pavilhão onde receberíamos algumas dicas importantes.
O Paulo Garcia, diretor da prova, já falava para um pequeno grupo quando entrei. Falou-nos do percurso e das suas dificuldades. Do calor que se iria fazer sentir. Do vento, que até saberia bem, mas que seria um fator acrescido para rapidamente chegarmos ao estado de desidratação. Das subidas. Das descidas. Dos trilhos técnicos. Dos estradões e das fitas de marcação. Nada ficou esquecido.
Saí de lá um pouco alarmada e, seguindo a estratégia que apontei acima, fiz reset ao que me assustava e concentrei-me no importante: “Susana, as fitas de marcação são de cor laranja. É esse o caminho a seguir”.
Um caso de polícia em Vila de Rei
7h30 da manhã e dirijo-me para o local da partida. Quando chego, já lá está o Carlos Freire e dois amigos – a Aida e o David – ambos da Policia Judiciária. O Carlos, não sendo polícia, é perito de balística da PJ. Naquela manhã estava sem bata branca e fugira do laboratório!
O grupo era pequeno – 38 atletas – contemplando três senhoras na prova de maior distância. Confesso que vinha consultando a lista de inscrições nos últimos dias, procurando ver as últimas atualizações. Se se mantivessem as três inscrições femininas, teria apenas que garantir que chegaria ao fim para assumir o terceiro lugar. Depressa o “apenas” se converteu numa árdua tarefa – a prova não tinha sido desenhada para “maçaricas” como eu.
A partida foi anunciada e lá saímos em ritmo sereno. Era tão sereno que consegui correr lado-a-lado com o Luís Mota. Reformulo. Consegui correr dois metros lado-a-lado com esse super-herói-da-montanha.
Foi precisamente com a Aida, o Carlos e o David que percorri a primeira metade da prova. Raramente deixei a posição “último lugar”. Uma ou outra vez lá brincava com os três, adiantando-me um pouco, rindo e perguntando se porventura tínhamos ido a Vila de Rei para alguma caminhada!
Por várias vezes vi o Carlos parar e aguardar debaixo da sombra de uma árvore. Quando passava por ele, logo lhe ralhava, dizendo que devia seguir e que estava proibido de esperar por mim. Eu safar-me-ía seguindo as fitas laranja fluorescentes.
Rapidamente me apercebi que sou ótima a falhar percursos. Vou demasiado focada no solo. No tal cascalho, nas pedras e nas folhinhas. E lá me escapa uma fita laranja do mais fluorescente que há!
Lá seguimos, dois polícias, um perito de balística e uma safada (eu própria, pois não esqueço o que exclamou um também polícia em Sevilha, quando me viu correr de saia de sevilhana), serra acima, serra abaixo. Sempre adiante. Subindo. Descendo e… catrapum! Numa descida, escorrego e enrolo-me nas silvas. Alguns arranhões, um polegar que desata de imediato a inchar, duas ou três palavras menos dignas de uma senhora, mas perfeitamente adequadas a uma safada, e continuamos caminho.
Antes de atingirmos o Centro Geodésico de Portugal – sim, o meio, mesmo o meio de Portugal! – passamos por uma hortinha, onde uma “Dona Aparecida” rega as suas couves e alfaces. Abeirei-me da senhora e perguntei se me podia ajudar, facultando-me água para lavar o braço que ostentava uma mistura de terra e sangue. Pois bem. Não só me lavou o braço, como o esfregou. “Ai coitadinha da menina, o que lhe foram fazer”, exclamou a generosa senhora. Perdi a coragem de lhe dizer que eu própria tinha tratado de assegurar uma maldade daquelas!
E assim continuou a perseguição policial serra acima e serra abaixo. Uma estranha perseguição. Nesta história, a safada vai atrás dos dois polícias e do perito de balística e não ao contrário. É mesmo safada!
Grandes Horizontes
Seria injusta se não falasse da organização (Horizontes) em geral e dos abastecimentos em particular desde já.
Tudo decorreu efetivamente de forma extraordinária. O percurso. As marcações. A equipa de apoio que, sem exceção, acolheu os atletas de forma exemplar. A papinha estava deliciosa. Até creme protetor nos ofereceram! No abastecimento de Formosa, a menina (esqueci o nome, lamento) proibiu-me determinantemente de colocar o protetor solar “genérico” no rosto e foi buscar o seu à mala para me dar. Protetor solar exclusivo para rosto da Avène, vejam só!
A cereja no topo do bolo, corrijo, a azeitona no topo da tosta barrada com paté de atum foi divinal!
Os “ratos da cidade” precisam sem dúvida visitar os “ratos do campo” e aprender com quem percebe de cidadania!
O Centro Geodésico de Portugal
O Picoto da Milriça acolhe aquele que é o centro de Portugal. E que centro este, vos garanto! Para lá chegarmos, iniciamos uma subida que nos consome toda a energia. O calor forte já se faz sentir. Quando julgamos que nada pode piorar, defrontamo-nos com uma subida vertiginosa que se desenvolve sobre calhau. Naquele momento lembrei-me da fase final da subida a Marvão, confesso. Os “degraus” formados pela pedras são de tal forma desnivelados que nada mais merecem do que os meus protestos por ter duas pernas curtinhas.
Chegados lá acima, o cenário é, aí sim, de cortar a respiração. Geograficamente estou perdida, é certo, mas sei que devo avistar algures a minha adorada Serra da Lousã e, em dias limpos como o que se verificava, à distância de 100 km, a Serra da Estrela. Absolutamente lindo. Senti-me muito, mas mesmo muito pequenina naquela vastidão que os meus olhos alcançavam.
Entre as Trutas e o Penedo…
Nesta parte do percurso segue ainda junta a comitiva da PJ e a safada. Converso um pouquito com a Aida. O David lá vai protestando e brincando comigo, dizendo para me apressar pois já se vai fazendo tarde. Mas, na maior parte das vezes, seguimos calados. É ótimo também!
Avistamos água e calculamos que o Penedo não esteja longe. “Se o Penedo não está longe, a minha banhoca está por perto também”, penso.
Mas as gentes da Horizontes são da mesma escola das gentes de São Mamede. “Descubra a forma mais penosa e longa para chegar do ponto A ao ponto B”, é o lema das escolas de marcação de percursos de montanha. Já lhe estou a apanhar o jeito e um destes dias organizo eu uma brincadeira destas para me rir, sentada na poltrona, à custa das agruras dos atletas!
Depois de muito subir e também descer, estamos praticamente dentro de água, caminhando ao longo da barragem. Em equilíbrio lá vamos seguindo, entrando finalmente em solo firme, mas continuando acompanhados por água à nossa direita.
E eis que… o paraíso aparece defronte de mim! Uma linda piscina, com cascata incorporada. Não vou seguramente recusar o convite que me faz para me refrescar. Tiro os ténis e tiro as meias. Arrefeço um pouco as pernas enquanto lavo os ténis e depois… “Splash, a caracoleta!” (lembrar-se-ão do título da versão original, presumo). A caracoleta nadou, mergulhou, foi junto da cascata e aproveitou os benefícios daquela água gelada em cada tendãozinho do seu corpo. Quando apareceu o fotógrafo Pedro que nos havia apanhado um pouco mais atrás, tratei de confirmar que o Luís Mota chegaria rápido à meta mas não tinha usufruído de um banho assim! As minhas convicções estavam certas!
Do Penedo à Formosa
Chegamos ao abastecimento do Penedo, onde nos demoramos um pouco. Depois do banho refrescante, há que repor energias. A Aida e o David partem primeiro. Fico para trás com o Carlos. Reenergizados, seguimos caminho. Estamos a meio da prova. O sol aquece. Espera-nos uma grande aventura.
Aos 40 km olho para o garmin que marca 8h30 de prova. Sorrio, e recordo-me que foi o tempo que demorei a concluir os 50 km de Sesimbra em abril último. “Isto é duro, muito duro”, concordamos os dois. O garmin, esse, “morre” ali mesmo. Não falamos muito. Andamos, corremos, seguimos em frente, pois para a frente é o caminho!
Chegamos à Formosa e à sua Aldeia de Xisto. Que coisa linda! O abastecimento espera-nos no varandim de uma casinha catita. Delicio-me com a porta de madeira e o corrimão da escada, em ferro, o qual desenha corações. A casa pertence a alguém de Lisboa, que visitou a aldeia há uns anos atrás e se apaixonou pelo local. Não tenho dificuldades em perceber porquê.
A caminho da EN2 e sem saber se me deixam prosseguir até à meta
Continuo a alguns metros do Carlos, que teve a infelicidade de, literalmente, furar o pé logo na fase inicial da prova. Segue assim com algumas dores que o impossibilitam de correr como deseja.
A dado momento mandou-me seguir. Confesso que tinha ido a Vila de Rei para abraçar a Inês e Diogo na meta e, como tal, receava que com o adiantado da hora, me vedassem a continuação na prova no abastecimento seguinte.
Perguntei-lhe se estava bem e garantiu-me que sim. Carlos, obrigada, foste uma ótima lebre e companhia!
Segui.
Diante de mim surge agora uma longa e abrupta descida, com pinheiros alinhados que distam menos de dois metros entre si. O piso é constituído por casca e folhas de pinheiro, pinhas, e muitas outras coisas desconhecidas que vou pisando com cautela. A progressão é lenta. Aquele piso não me permite que o faça de outra forma.
Finalmente chego à base e a um estradão. Agora sim, desato a correr. Penso no Diogo e na Inês. Quero que vejam a mamã chegar à meta e receber a medalha de terceiro lugar. Apenas isso me move.
Rapidamente o estradão termina e inicio uma subida muito íngreme que me conduz ao cume de uma serra. À minha esquerda, um vale encaixado que se desenvolve ao longo de várias centenas de metros. Cenário lindo. E vejo o sol a descer.
Quando chego ao fim deste estradão, avisto o Paulo Garcia. Estou assim no abastecimento da EN2. “Não me vai deixar seguir, pois não?”, pergunto. O Paulo sorri e diz-me que vou continuar e que tenho 11 km pela frente. “Mas… não trouxe o frontal”, respondo. O Paulo assegura-me que já tratou disso e que no último abastecimento terei o que preciso à minha espera.
Ganho um novo ânimo, bebo aquele que penso ser o vigésimo copo de coca-cola do dia, atesto pela sexta vez o depósito de água do meu camelback e sigo caminho.
A caminho do fim
Faltam 11 km. “6 km até ao último abastecimento, sempre a descer”, havia dito o Paulo. “E depois serão 5 km a subir”, acrescentou. Truques, só truques. Desci durante algum tempo, sim, e em estradão como me havia assegurado. Mas também subi. E também me enrolei novamente em silvas. E passei ao lado de uma casa abandonada digna de um conto de fadas. E assim, 8 km depois, cheguei a Poios.
Último abastecimento, uma bifana e, claro, coca-cola. O Paulo está lá de novo e diz-me que o Carlos continua em prova. Sorrio. Dois dedos de conversa com alguns dos elementos da organização e prossigo na minha aventura.
E, uma vez mais, o sol a pôr-se
Uns metros adiante surge uma parede como nunca subi na vida. Não olho para trás porque poderá correr mal. Se os meus filhos algum dia fizerem algo semelhante, prefiro não saber.
Chegada ao topo atravesso mais um caminho digno de conto de fadas e passo pelo fotógrafo Pedro, que me tira mais um retrato. Há umas horas atrás, enquanto me refrescava perto de Penedo, deveria estar com melhores cores seguramente!
Ligo o frontal que me foi dado em Poios e sigo para os derradeiros kms. Quando dou por mim, já avisto Vila de Rei. Quando me apercebo já os meus pés pisam pedra de civilização. Estou quase e não foram 5 km como havia dito o Paulo. Foram menos, muito menos! Gostei desta estratégia para a gestão do esforço, confesso!
A meta
Contorno uma esquina e avisto o Diogo e a Inês a brincar junto da linha da meta. Solto um grito de alegria profundo.
Correm na minha direção, agarro nas suas mãozinhas e termino, “Oh Meu Deus”, se termino! Chega assim ao fim a minha aventura de 65 km e 13h40m, e conquisto assim o meu primeiro terceiro lugar!
Foi uma vitória à minha maneira, mas foi a minha vitória!
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