Pensei em duas hipóteses de estilo para este meu escrito. Dramático ou jocoso. Optei pelo segundo. Parece-me muito mais divertido. De resto, depois do que gargalhei ontem na Serra da Lousã, só podia ser um registo animado.
Antes de mais as minhas desculpas por usurpar uma ideia do grupo de corrida Portugal Running. São grandes dinamizadores de treinos de corrida de todos os jeitos e feitios, seja em alcatrão ou fora dele.
Recentemente vi que lançavam um novo modelo de treino em trilhos, para iniciados, para o qual adotaram o nome "Trilhos para Totós". Não sei de quem foi a ideia, mas considero-a genial. E quem sabe por lá passe um destes dias, assim arranje tempo na minha preenchida agenda.
Não quero ofender os meus parceiros dos 47 km na Serra da Lousã. Não entendo nem uso aqui o termo totó de forma depreciativa. Vão-me desculpar, mas aquilo não é para quem quer. É para quem pode. E quem pode é quem treina e está livre de entorses, contusões, luxações e outros palavrões! Ou treinamos afincadamente para uma prova daquela estirpe - hard trail, dizem eles - ou então pareceremos efetivamente uns totós. E mais totós ficamos com todos aqueles que cruzam a meta antes de nós. Começaram a chegar 7 horas antes de nós!
Ontem saí do meu corpo por diversas vezes e fiquei a observar-me. "Quem é aquela totó ali enterrada no meio da lama?", perguntava eu. Uns metros adiante, surgia uma parede, deixava novamente o meu corpo e interrogava lá de cima "diz-me lá, sua totó, como pensas agora subir essa rocha, mais alta do que a altura das tuas pernas?", contemplando todo aquele cenário, flutuando por entre o nevoeiro e tentando afastar a neblina para me ver melhor. Foram 47 km de espetáculo digno de se ver, vos garanto.
Digna de ser ver é também a Serra da Lousã. Como sempre, de resto. A Serra da Lousã não nos desilude, por isso tratem de não a desiludir também. Uma das coisas positivas de ficar cá atrás - cá atrás mesmo, com os vassouras a metros de nós -, é fazer serviço cívico. E todos nós, 4 na altura, apanhámos qualquer coisa do chão. Melhor, várias coisas do chão. Creio que esta noite dormi mal porque me incomodou lembrar que ignorei um pacote de lenços de papel que se encontrava junto à água, porque simplesmente já me tinha esquecido como dobrar as pernas. O cansaço era demasiado. Senhores e senhoras trailers, vão-me desculpar, mas o lixo é no sítio certo. A serra não é de todo o sítio certo. Está dado o puxão de orelhas. Adiante.
Tenho que visitar a Lousã com 30 graus centígrados à sombra. Não deixei de mergulhar os pés e as pernas naquela água ontem. Fi-lo inúmeras vezes. Mesmo quando o percurso não o exigia. Mas quero efetivamente mergulhar ali o corpo todo. Não percebo porque foram rodar aquele filme muito velhinho chamado "Cocktail" à Jamaica. As cascatas da Lousã são muito mais bonitas. O verde da Lousã é muito mais bonito. E acredito que por ali se coma bem melhor. Só não garanto, porque nunca fui à Jamaica.
O que é certo, é que aos 5 km interiorizei que não terminaria a prova. A dificuldade de progressão no terreno era de tal forma notória, que perdi as esperanças de chegar à meta naquela que seria a fase mais fácil do percurso. Os ténis não se soltaram dos pés por milagre, mas deixei metade do bastão atrás. Melhor. Não deixei. "Chafurdei" na lama, recuperei-o e transportei-o naturalmente até ao primeiro abastecimento, onde o coloquei no devido lugar. De resto, mas valia ter deixado tudo, porque mais tarde verifiquei que os bastões eram mais um empecilho do que uma ajuda. Para galgar pedras precisava das mãos. Para escorregar precisava das mãos. Aprendi a lição.
Entretanto o ânimo surgiu de não sei onde e acreditei de novo. Por pouco tempo. Aos 20 km olhei para o relógio e verifiquei que estava demasiado próxima do tempo de corte. O primeiro tempo de corte. 5 horas para 25 km. Nem nos meus piores cenários - sim, desta vez estudei a lição uns dias antes - considerei não chegar ao primeiro controlo de tempo com alguma folga. Cheguei à Sra. da Piedade com 5h36 e com um misto de nó no estômago e alívio. Nó no estômago porque ali daria por terminada a minha prestação ao exceder o tempo limite e ninguém se propõe ir tão longe para fazer apenas metade do objetivo. Alívio pela visão de um banho quente, de uma refeição sentada e a possibilidade da contemplação da serra umas centenas de metros abaixo. Errado. Os tempos de controle e respetivo tempo máximo de prova haviam sido aumentados em 60 minutos. E transmitiram-nos naquele preciso momento. Afinal, naqueles bandas, as Nossas Senhoras têm mesmo piedade!
E prosseguimos. Prosseguimos eu, o Carlos, o Luís e o João. Os dois primeiros a recuperar de lesões e o último, para além de lesionado, mais interessado em tirar fotografias do que chegar rápido à meta. Ora sendo eu lenta, não poderia estar melhor entregue!
Depois dos 25 km, esperava-nos nova subida. Daquelas que sobem, sobem... e continuam a subir. Uns quilómetros adiante comecei a reconhecer o percurso e vi-me em 2013. Sozinha, na minha segunda prova fora de estrada, a fazer os 23 km dos Trilhos dos Abutres. Sorri porque me recordei que na realidade na altura me havia inscrito na prova maior. A dias do evento, um rasgo de lucidez e bom senso, aliado a uma lesão ligeira e aquilo a que na gíria chamam "miufa", levou-me a fazer downgrade para os 23. Hoje sei, porque a completei ontem, que nunca teria conseguido terminar os 47 km há um ano atrás. Sabia lá eu o que era a vida na montanha!
Entretanto mais um abastecimento, um extra, e bebemos um chá quente. Chega também a Analice e o Fábio, com mais vassouras. Tanto totó para empurrar. Conto-os e verifico que são precisos mais vassouras do que totós! Metemo-nos a caminho e logo se segue o trilho em single track por entre pinheiros que já me havia deslumbrado há um ano. Adoro aquele trilho. Aquele trilho tem um nome, sabiam? "Trilho onde a totó consegue correr como a Anna Frost... Bem... Quase"!
Em Gondramaz, elementos da organização gritam lá de cima avistando 4 totós e os vassouras. A Analice e o Luís já haviam seguido na frente. Ficou connosco o Fábio, sobrinho do José Carlos, o Mr. Vassoura-Simpatia. "Despachem-se! Faltam 8 minutos!", exclamam lá de cima. Não sabemos se falam sério, mas desatamos a correr prado fora e chegamos a tempo. Já passaram 9h50 desde que parti. Sento-me pela primeira vez por uns breves segundos. Tenho medo de ficar mais tempo. Poderei não me conseguir levantar. Já só faltam 10 km e está na altura de ligar o frontal.
O percurso é comum ao dos 23 km que já conheço. "O ano passado estava aqui um fotógrafo", digo. "Tenho uma foto aqui", esclareço. Era de dia. E estava um lindo dia de sol.
Pelo contrário, agora está escuro e o ar quente que expiro mistura-se com a luz do frontal tornando a visibilidade muito fraca. Mas que é lindo assim, caramba, se é! Tentamos descobrir as fitas e iniciamos o labirinto das pontes tortuosas. Tortuosas porque são pontes toscas, rugosas, traiçoeiras. Ora de frente, ora de lado, já não sei qual a melhor forma de as atravessar. Esquerda, direita, esquerda, direita! 452 pontes. Não estou a exagerar muito!
Seguimos calados. Há muito tempo que vamos correndo quando podemos, andando quando não podemos, mas seguimos calados. Quebro o silêncio com um dos meus gritos estridentes, vendo luzes de civilização ao fundo.
Quando chegamos à levada de água sei que estamos perto. Sei também que depois de rolar um bocadinho terei uma rampa-toma-lá-para-veres-o -que-é-bom para subir até ao pavilhão. Há um ano sentei-me lá em cima aguardando os meus amigos ultras e rindo-me das suas caras a terminar aquele desafio. "Ri-te, ri-te", pensava ontem enquanto a subia.
Passaram 12h16m desde que parti de manhã. À espera dos totós está um pavilhão cheio... cheio de alegria de dezenas de elementos da organização e alguns atletas resistentes, que nos recebem como verdadeiros heróis!
Termino com um sincero agradecimento à organização, recheada de gente maravilhosa. Não sei se serei desclassificada por dizer isto, mas em Espinho, no último abastecimento, uma das meninas preparou e deu-me a tosta com dose de mel extra à boca... Não sei se foi por gentileza ou por ver o estado das minhas mãos, confesso. A todos a quem fiz esperar e privei de ver uma qualquer jogatana de futebol que dava na TV aquela hora... desculpem qualquer coisinha. Para a próxima tentarei ser mais rápida. Ou, quem sabe, retribuindo a gentileza de quem acompanhou os totós, varrer totós em 2015!
Antes de mais as minhas desculpas por usurpar uma ideia do grupo de corrida Portugal Running. São grandes dinamizadores de treinos de corrida de todos os jeitos e feitios, seja em alcatrão ou fora dele.
Recentemente vi que lançavam um novo modelo de treino em trilhos, para iniciados, para o qual adotaram o nome "Trilhos para Totós". Não sei de quem foi a ideia, mas considero-a genial. E quem sabe por lá passe um destes dias, assim arranje tempo na minha preenchida agenda.
Não quero ofender os meus parceiros dos 47 km na Serra da Lousã. Não entendo nem uso aqui o termo totó de forma depreciativa. Vão-me desculpar, mas aquilo não é para quem quer. É para quem pode. E quem pode é quem treina e está livre de entorses, contusões, luxações e outros palavrões! Ou treinamos afincadamente para uma prova daquela estirpe - hard trail, dizem eles - ou então pareceremos efetivamente uns totós. E mais totós ficamos com todos aqueles que cruzam a meta antes de nós. Começaram a chegar 7 horas antes de nós!
Ontem saí do meu corpo por diversas vezes e fiquei a observar-me. "Quem é aquela totó ali enterrada no meio da lama?", perguntava eu. Uns metros adiante, surgia uma parede, deixava novamente o meu corpo e interrogava lá de cima "diz-me lá, sua totó, como pensas agora subir essa rocha, mais alta do que a altura das tuas pernas?", contemplando todo aquele cenário, flutuando por entre o nevoeiro e tentando afastar a neblina para me ver melhor. Foram 47 km de espetáculo digno de se ver, vos garanto.
Digna de ser ver é também a Serra da Lousã. Como sempre, de resto. A Serra da Lousã não nos desilude, por isso tratem de não a desiludir também. Uma das coisas positivas de ficar cá atrás - cá atrás mesmo, com os vassouras a metros de nós -, é fazer serviço cívico. E todos nós, 4 na altura, apanhámos qualquer coisa do chão. Melhor, várias coisas do chão. Creio que esta noite dormi mal porque me incomodou lembrar que ignorei um pacote de lenços de papel que se encontrava junto à água, porque simplesmente já me tinha esquecido como dobrar as pernas. O cansaço era demasiado. Senhores e senhoras trailers, vão-me desculpar, mas o lixo é no sítio certo. A serra não é de todo o sítio certo. Está dado o puxão de orelhas. Adiante.
Tenho que visitar a Lousã com 30 graus centígrados à sombra. Não deixei de mergulhar os pés e as pernas naquela água ontem. Fi-lo inúmeras vezes. Mesmo quando o percurso não o exigia. Mas quero efetivamente mergulhar ali o corpo todo. Não percebo porque foram rodar aquele filme muito velhinho chamado "Cocktail" à Jamaica. As cascatas da Lousã são muito mais bonitas. O verde da Lousã é muito mais bonito. E acredito que por ali se coma bem melhor. Só não garanto, porque nunca fui à Jamaica.
O que é certo, é que aos 5 km interiorizei que não terminaria a prova. A dificuldade de progressão no terreno era de tal forma notória, que perdi as esperanças de chegar à meta naquela que seria a fase mais fácil do percurso. Os ténis não se soltaram dos pés por milagre, mas deixei metade do bastão atrás. Melhor. Não deixei. "Chafurdei" na lama, recuperei-o e transportei-o naturalmente até ao primeiro abastecimento, onde o coloquei no devido lugar. De resto, mas valia ter deixado tudo, porque mais tarde verifiquei que os bastões eram mais um empecilho do que uma ajuda. Para galgar pedras precisava das mãos. Para escorregar precisava das mãos. Aprendi a lição.
Entretanto o ânimo surgiu de não sei onde e acreditei de novo. Por pouco tempo. Aos 20 km olhei para o relógio e verifiquei que estava demasiado próxima do tempo de corte. O primeiro tempo de corte. 5 horas para 25 km. Nem nos meus piores cenários - sim, desta vez estudei a lição uns dias antes - considerei não chegar ao primeiro controlo de tempo com alguma folga. Cheguei à Sra. da Piedade com 5h36 e com um misto de nó no estômago e alívio. Nó no estômago porque ali daria por terminada a minha prestação ao exceder o tempo limite e ninguém se propõe ir tão longe para fazer apenas metade do objetivo. Alívio pela visão de um banho quente, de uma refeição sentada e a possibilidade da contemplação da serra umas centenas de metros abaixo. Errado. Os tempos de controle e respetivo tempo máximo de prova haviam sido aumentados em 60 minutos. E transmitiram-nos naquele preciso momento. Afinal, naqueles bandas, as Nossas Senhoras têm mesmo piedade!
E prosseguimos. Prosseguimos eu, o Carlos, o Luís e o João. Os dois primeiros a recuperar de lesões e o último, para além de lesionado, mais interessado em tirar fotografias do que chegar rápido à meta. Ora sendo eu lenta, não poderia estar melhor entregue!
Depois dos 25 km, esperava-nos nova subida. Daquelas que sobem, sobem... e continuam a subir. Uns quilómetros adiante comecei a reconhecer o percurso e vi-me em 2013. Sozinha, na minha segunda prova fora de estrada, a fazer os 23 km dos Trilhos dos Abutres. Sorri porque me recordei que na realidade na altura me havia inscrito na prova maior. A dias do evento, um rasgo de lucidez e bom senso, aliado a uma lesão ligeira e aquilo a que na gíria chamam "miufa", levou-me a fazer downgrade para os 23. Hoje sei, porque a completei ontem, que nunca teria conseguido terminar os 47 km há um ano atrás. Sabia lá eu o que era a vida na montanha!
Entretanto mais um abastecimento, um extra, e bebemos um chá quente. Chega também a Analice e o Fábio, com mais vassouras. Tanto totó para empurrar. Conto-os e verifico que são precisos mais vassouras do que totós! Metemo-nos a caminho e logo se segue o trilho em single track por entre pinheiros que já me havia deslumbrado há um ano. Adoro aquele trilho. Aquele trilho tem um nome, sabiam? "Trilho onde a totó consegue correr como a Anna Frost... Bem... Quase"!
Em Gondramaz, elementos da organização gritam lá de cima avistando 4 totós e os vassouras. A Analice e o Luís já haviam seguido na frente. Ficou connosco o Fábio, sobrinho do José Carlos, o Mr. Vassoura-Simpatia. "Despachem-se! Faltam 8 minutos!", exclamam lá de cima. Não sabemos se falam sério, mas desatamos a correr prado fora e chegamos a tempo. Já passaram 9h50 desde que parti. Sento-me pela primeira vez por uns breves segundos. Tenho medo de ficar mais tempo. Poderei não me conseguir levantar. Já só faltam 10 km e está na altura de ligar o frontal.
O percurso é comum ao dos 23 km que já conheço. "O ano passado estava aqui um fotógrafo", digo. "Tenho uma foto aqui", esclareço. Era de dia. E estava um lindo dia de sol.
Pelo contrário, agora está escuro e o ar quente que expiro mistura-se com a luz do frontal tornando a visibilidade muito fraca. Mas que é lindo assim, caramba, se é! Tentamos descobrir as fitas e iniciamos o labirinto das pontes tortuosas. Tortuosas porque são pontes toscas, rugosas, traiçoeiras. Ora de frente, ora de lado, já não sei qual a melhor forma de as atravessar. Esquerda, direita, esquerda, direita! 452 pontes. Não estou a exagerar muito!
Seguimos calados. Há muito tempo que vamos correndo quando podemos, andando quando não podemos, mas seguimos calados. Quebro o silêncio com um dos meus gritos estridentes, vendo luzes de civilização ao fundo.
Quando chegamos à levada de água sei que estamos perto. Sei também que depois de rolar um bocadinho terei uma rampa-toma-lá-para-veres-o
Passaram 12h16m desde que parti de manhã. À espera dos totós está um pavilhão cheio... cheio de alegria de dezenas de elementos da organização e alguns atletas resistentes, que nos recebem como verdadeiros heróis!
Termino com um sincero agradecimento à organização, recheada de gente maravilhosa. Não sei se serei desclassificada por dizer isto, mas em Espinho, no último abastecimento, uma das meninas preparou e deu-me a tosta com dose de mel extra à boca... Não sei se foi por gentileza ou por ver o estado das minhas mãos, confesso. A todos a quem fiz esperar e privei de ver uma qualquer jogatana de futebol que dava na TV aquela hora... desculpem qualquer coisinha. Para a próxima tentarei ser mais rápida. Ou, quem sabe, retribuindo a gentileza de quem acompanhou os totós, varrer totós em 2015!
Olá Susana, vamos varrer totós em 2017 ?
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