terça-feira, 5 de agosto de 2014

Era uma vez, no Século XXI, em Óbidos


(foto de Bernardete Morita)

Numa vila pequenina, de seu nome Óbidos, um lindo castelo se ergue sobre um monte, outrora à beira mar. Já na pré-história este castelo despertara o interesse dos povos invasores da Península Ibérica, dada a sua proximidade à costa atlântica, tendo sido ocupado por Lusitanos, Romanos, Visigodos e Muçulmanos.

Ao segundo dia do mês agosto do ano de 2014, o Castelo de Óbidos foi palco de nova batalha e registou um importante marco na sua história: a reconquista por centenas de… corredores! Uns batalharam 27 km, outros 52 km, mas todos eles, do primeiro ao último a conquistar as muralhas, saíram vencedores.

Dentro de muralhas

Decorria o Mercado Medieval. Meninas, pequeninas e grandes, com os cabelos ornamentados com coroas de flores, passeavam-se exibindo os lindos vestidos da época. Os homens, com o seu ar rude, falavam alto, fazendo justiça pelas próprias mãos ou com recurso a um dos carinhosos instrumentos de tortura medieval. Confesso que me teria dado jeito, depois dos 52 km, aquele simpático “estica o esqueleto”, puxando ambos os braços e pernas. Mas, felizmente, as “tenazes” foram outras.

Pelas ruas, cheirinhos agradáveis de iguarias diversas a arder nas brasas faziam as alegrias dos mais famintos (e barrigudos, também).

Tudo decorria “medievalmente” quando, de repente, centenas de pessoas, dotadas de costumes algo estranhos, invadem a vila. Vestimentas coloridas (e curtas, deixando as camponesas a murmurar sobre o escândalo que seus olhos observavam), com nomes estranhos – Salomon, Asics, Kalenji e coisas que tais, nunca antes vistas, juntaram-se e apimentaram o reboliço que já se vivia.

Partida, largada e fugida, na Porta da Vila!

E houve de tudo naquela “batalha” travada pela gente colorida.
Houve tudo menos canhões, espadas ou instrumentos de tortura medievais.
Houve terra, cascalho, água e lama. Houve areia. Compacta e movediça. Houve a rugosidade das pedrinhas e a macieza da caruma de pinheiro. Houve subidinhas, descidinhas e estradões. Houve arribas junto ao mar e houve caminhos junto à lagoa. Houve silêncio e houve música dos anos 80, oriunda de uma tal Festa de Branco, na Foz do Arelho. Também houve o "zzzzzz" irritante das melgas e as marcas que me deixaram. Houve calor e houve chuvinha a bater no rosto, refrescando o corpo e despertando os sentidos, deixando os aromas mais apurados. Da terra, da vegetação e de várias flores de cheiro que fui tentando adivinhar pelo percurso. Houve fome e houve também "matar a fome", com os repastos que nos foram sendo oferecidos para retemperar energias - o melão ressuscitou-me três vezes.

Houve o escuro da noite. Gosto da noite. Gosto de correr e caminhar de noite. Acompanhada. "Mas... não se vê nada", muitos dirão. Estão enganados. Veem-se coisas "que eu sei lá". Até se veem coisas que não existem! Mas houve também para mim, para nós, o amanhecer. Recordo-me de um momento em particular, quando o Rui seguia uns metros à frente, numa ligeira subida num estradão que atravessava um pomar. Via apenas o seu contorno, numa manhã que acordava, com aquela luz azulada que permite a definição de contornos como nenhuma outra. Pena não ter registado o momento.

Por falar em pomar... Houve furtos. Eu não sou de acusar ninguém, mas seguia apenas eu e o Rui e posso confirmar que houve furtos. Não havia mais ninguém e uma árvore ficou menos pesada. Eu asseguro que não colhi peras das árvores, mas comi duas. E agora?! Quem desvendará este caso de polícia bicudo que colocará o presumível culpado numa qualquer forca medieval?

Às 6 da manhã houve o sino da igreja. Quem leu o meu mais recente texto, "A Corrida e as Leis de Murphy", sabe do que falo. O sino da igreja, a meta quase a chegar, mas o quase a tardar. Aqueles dois últimos quilómetros foram dos mais longos da minha vida. Quando avisto as escadas que nos conduzem ao castelo sei que está quase. Já as tinha subido há um ano, na versão mais curta da batalha.

Está aqui alguém?

Chegamos à entrada, o Rui dá-me a passagem e ofereço um "truz truz... bom dia!" aos simpáticos resistentes que aguardam os derradeiros atletas. Antes de qualquer coisa, olho para a direita à procura delas. Das marquesas. Era ali que estavam há um ano e eu sabia que em 2013 a Helena e o Rui Queixada não haviam arredado pé sem que chegassem os últimos atletas. Recebi o meu prémio de finisher, nada comi ou bebi e segui direta para uma massagem a quatro mãos, vigorosa e penosa, mas que sei ter permitido que no dia seguinte acordasse sem grandes mazelas.

Era uma vez…

Os "era uma vez" dos tempos modernos são definitivamente diferentes dos de antigamente. Tive um cavalheiro sempre, e pacientemente, a meu lado. Não o esperei no castelo. Ter-me-iam faltado as tranças "Rapunzel" para as lançar da torre. Em vez disso, percorri o caminho de 52 km em 10 horas e uns minutos mais, com ele, para lá chegar. E que bem que soube!



12 comentários:

  1. E que bem que soube... A prova a teu lado, e este belo texto.
    Beijo

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  2. Wow Susana!!!! Cada palavra, cada passagem... Deliciosas como o chocolate que comi ao iniciar a batalha! Amiga, és Grande!! Parabéns! Beijocas

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  3. Ó Susana, porquê aquele parágrafo do furto no pomar? Texto tão bonito, mas o que me ficou a “bater” foi quem terá sido o malfeitor que merecia bem uma forca medieval!...

    Parabéns a ambos!

    Orlando Duarte

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  4. Isso é que foi uma noite e...pêras, Susana. Como sempre, uma crónica deliciosa, bem circunstanciada e que faz reviver quem andou naqueles cenários de breu. Gostei muito do "melão ressuscitador" mas eu fui mais para a melancia, eheh. Aqueles abastecimentos faziam-nos perder a pressa toda, tipo "que se lixe, está-se aqui tão bem"! Também quero fazer um relatozinho, mas ainda nem sei como começar. Parabéns, Susana, mas para quem já fez 100, 52 é meia dose. Beijinho.

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    1. Ainda salivo com o melão, Fernando! Muitos parabéns pela brilhante prova!
      Até Setembro, na mais bonita meia-maratona portuguesa! Beijinho.

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  5. Mais um pedaço de leitura delicioso, que me fez arrepender ainda mais não me ter inscrito, mas que ao mesmo tempo me transportou para esses 52kms...

    Parabéns aos 2!

    Paulo Alves

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    1. Muito obrigada, Paulo! Em 2015 há mais UTNLO à nossa espera!

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  6. E eu só me posso sentir lisonjeada por teres escolhido uma das minhas fotos para "visualizarem" o que, dificilmente, as tuas belas palavras deixaram por dizer.
    Um grande beijinho e mais uma vez Parabéns :)

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