(foto de Bernardete Morita)
Numa vila pequenina, de seu nome Óbidos, um lindo castelo se
ergue sobre um monte, outrora à beira mar. Já na pré-história este castelo
despertara o interesse dos povos invasores da Península Ibérica, dada a sua
proximidade à costa atlântica, tendo sido ocupado por Lusitanos, Romanos,
Visigodos e Muçulmanos.
Ao segundo dia do mês agosto do ano de 2014, o Castelo de Óbidos foi palco de nova batalha e registou um importante marco na sua história: a reconquista por centenas de… corredores! Uns batalharam 27 km, outros 52 km, mas todos eles, do primeiro ao último a conquistar as muralhas, saíram vencedores.
Dentro de muralhas
Decorria o Mercado Medieval. Meninas, pequeninas e grandes, com
os cabelos ornamentados com coroas de flores, passeavam-se exibindo os lindos vestidos
da época. Os homens, com o seu ar rude, falavam alto, fazendo justiça pelas
próprias mãos ou com recurso a um dos carinhosos instrumentos de tortura
medieval. Confesso que me teria dado jeito, depois dos 52 km, aquele simpático “estica
o esqueleto”, puxando ambos os braços e pernas. Mas, felizmente, as “tenazes”
foram outras.
Pelas ruas, cheirinhos agradáveis de iguarias diversas a arder nas
brasas faziam as alegrias dos mais famintos (e barrigudos, também).
Tudo decorria “medievalmente” quando, de repente, centenas
de pessoas, dotadas de costumes algo estranhos, invadem a vila. Vestimentas
coloridas (e curtas, deixando as camponesas a murmurar sobre o escândalo que
seus olhos observavam), com nomes estranhos – Salomon, Asics, Kalenji e coisas
que tais, nunca antes vistas, juntaram-se e apimentaram o reboliço que já se
vivia.
Partida, largada e
fugida, na Porta da Vila!
E houve de tudo
naquela “batalha” travada pela gente colorida.
Houve tudo menos
canhões, espadas ou instrumentos de tortura medievais.
Houve terra,
cascalho, água e lama. Houve areia. Compacta e movediça. Houve a rugosidade das
pedrinhas e a macieza da caruma de pinheiro. Houve subidinhas, descidinhas e
estradões. Houve arribas junto ao mar e houve caminhos junto à lagoa. Houve
silêncio e houve música dos anos 80, oriunda de uma tal Festa de Branco, na Foz
do Arelho. Também houve o "zzzzzz" irritante das melgas e as marcas
que me deixaram. Houve calor e houve chuvinha a bater no rosto, refrescando o corpo
e despertando os sentidos, deixando os aromas mais apurados. Da terra, da
vegetação e de várias flores de cheiro que fui tentando adivinhar pelo
percurso. Houve fome e houve também "matar a fome", com os repastos
que nos foram sendo oferecidos para retemperar energias - o melão ressuscitou-me
três vezes.
Houve o escuro da
noite. Gosto da noite. Gosto de correr e caminhar de noite. Acompanhada.
"Mas... não se vê nada", muitos dirão. Estão enganados. Veem-se
coisas "que eu sei lá". Até se veem coisas que não existem! Mas houve
também para mim, para nós, o amanhecer. Recordo-me de um momento em particular,
quando o Rui seguia uns metros à frente, numa ligeira subida num estradão que
atravessava um pomar. Via apenas o seu contorno, numa manhã que acordava, com
aquela luz azulada que permite a definição de contornos como nenhuma outra.
Pena não ter registado o momento.
Por falar em
pomar... Houve furtos. Eu não sou de acusar ninguém, mas seguia apenas eu e o
Rui e posso confirmar que houve furtos. Não havia mais ninguém e uma árvore
ficou menos pesada. Eu asseguro que não colhi peras das árvores, mas comi duas.
E agora?! Quem desvendará este caso de polícia bicudo que colocará o presumível
culpado numa qualquer forca medieval?
Às 6 da manhã houve o sino da igreja. Quem leu o meu mais recente texto, "A Corrida e as Leis de Murphy", sabe do que falo. O sino da igreja, a meta quase a chegar, mas o quase a tardar. Aqueles dois últimos quilómetros foram dos mais longos da minha vida. Quando avisto as escadas que nos conduzem ao castelo sei que está quase. Já as tinha subido há um ano, na versão mais curta da batalha.
Está aqui alguém?
Chegamos à entrada,
o Rui dá-me a passagem e ofereço um "truz truz... bom dia!" aos
simpáticos resistentes que aguardam os derradeiros atletas. Antes de qualquer
coisa, olho para a direita à procura delas. Das marquesas. Era ali que estavam
há um ano e eu sabia que em 2013 a Helena e o Rui Queixada não haviam arredado
pé sem que chegassem os últimos atletas. Recebi o meu prémio de finisher, nada
comi ou bebi e segui direta para uma massagem a quatro mãos, vigorosa e penosa,
mas que sei ter permitido que no dia seguinte acordasse sem grandes mazelas.
Era uma vez…
Os "era uma
vez" dos tempos modernos são definitivamente diferentes dos de
antigamente. Tive um cavalheiro sempre, e pacientemente, a meu lado. Não o
esperei no castelo. Ter-me-iam faltado as tranças "Rapunzel" para as
lançar da torre. Em vez disso, percorri o caminho de 52 km em 10 horas e uns minutos mais, com ele, para lá chegar. E que bem que soube!
E que bem que soube... A prova a teu lado, e este belo texto.
ResponderEliminarBeijo
Outro! :-)
EliminarWow Susana!!!! Cada palavra, cada passagem... Deliciosas como o chocolate que comi ao iniciar a batalha! Amiga, és Grande!! Parabéns! Beijocas
ResponderEliminarParabéns a ti, Verinha! Beijo!
EliminarÓ Susana, porquê aquele parágrafo do furto no pomar? Texto tão bonito, mas o que me ficou a “bater” foi quem terá sido o malfeitor que merecia bem uma forca medieval!...
ResponderEliminarParabéns a ambos!
Orlando Duarte
Ainda enforco alguém com este relato! Até breve, Orlando!
EliminarIsso é que foi uma noite e...pêras, Susana. Como sempre, uma crónica deliciosa, bem circunstanciada e que faz reviver quem andou naqueles cenários de breu. Gostei muito do "melão ressuscitador" mas eu fui mais para a melancia, eheh. Aqueles abastecimentos faziam-nos perder a pressa toda, tipo "que se lixe, está-se aqui tão bem"! Também quero fazer um relatozinho, mas ainda nem sei como começar. Parabéns, Susana, mas para quem já fez 100, 52 é meia dose. Beijinho.
ResponderEliminarAinda salivo com o melão, Fernando! Muitos parabéns pela brilhante prova!
EliminarAté Setembro, na mais bonita meia-maratona portuguesa! Beijinho.
Mais um pedaço de leitura delicioso, que me fez arrepender ainda mais não me ter inscrito, mas que ao mesmo tempo me transportou para esses 52kms...
ResponderEliminarParabéns aos 2!
Paulo Alves
Muito obrigada, Paulo! Em 2015 há mais UTNLO à nossa espera!
EliminarE eu só me posso sentir lisonjeada por teres escolhido uma das minhas fotos para "visualizarem" o que, dificilmente, as tuas belas palavras deixaram por dizer.
ResponderEliminarUm grande beijinho e mais uma vez Parabéns :)
Obrigada, Bernardete! Grande beijinho para ti!
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