A minha mãe é algarvia. O meu pai é de Penafiel. Eu nasci em Lisboa.
Quem é de Lisboa não é de coisa nenhuma. Desculpem-me a franqueza, mas é verdade.
Adoro Lisboa. Lisboa é linda. Mas não a sinto como minha. Nem como sendo dela.
Pelo contrário, quando vou ao Norte do País, sinto-me de lá. Sinto porque me lembro da avó Quina que fazia café de cafeteira que era de cheirar e chorar por mais. Sinto porque recordo a alegria das dezenas de Natais passados com as dezenas de primos e as dezenas de tios. Sinto porque recordo a imagem das várias dezenas de presentinhos espalhados pela casa da avó, no topo da lareira, nos parapeitos das janelas ou no chão, ocupando toda a sala. Eram pequeninos e pouco importava. Todos recebiam qualquer coisa. Mas isso foi há muito tempo. Hoje bastar-me-iam o bacalhau cozido com todos, o tinto, as dezenas de primos, as dezenas de tios e a avó Quina. Alguns já cá não estão. Mas não deixo de me lembrar deles quando vou ao Norte. De os sentir e de saber que algures, em qualquer lado, olham pelos que por cá ficaram e sentem que sentimos falta.
Quando rumo a Sul, e faço-o inúmeras vezes, sinto os três meses de férias de Verão passados em casa dos avós, sob o calor do Algarve Serrano. Recordo a "macaca", o "mata" e as "escondidas", que me valeram uma cicatriz no joelho que nunca desapareceu. Sinto o sabor do pão saloio quente com mel e as dores de barriga que me deixava depois. Sinto as histórias da avó Clarinha, que descrevia tudo com um detalhe que nunca conheci, mas nunca perdendo o "fio à meada". E sinto o silêncio do avô Brás, sentado no alpendre, a contemplar o dia a terminar e as últimas cantatas das cigarras que dariam lugar aos "gri gri" dos grilos. Por tudo isto, sinto a Serra Algarvia como sendo um pedacinho minha.
E foi com esta saudade de tempos idos que rumei no dia 16 de agosto a Salir, deixando para trás a aldeia algarvia dos avós, que agora é dos pais, que um dia será minha, depois dos meus filhos e, se assim for o seu desejo, dos meus netos. Chegaria o dia e chegou. Estaria presente na primeira prova de trilhos no Algarve Serrano. Dotada de algum juízo inscrevi-me na prova de 25 km, mas não deixei de assistir à partida dos atletas que se aventurariam nos 50 km. Aqueles que não receavam "cozer e assar no Caldeirão", tal qual o João Ratão.
Segui tranquila, apreciando as alfarrobas e as azeitonas caídas no chão. Portugal é tão pequeno mas consegue acumular tantas diferenças, de Norte a Sul. Ainda não tinha atingido os 3 km e fui brindada com uma picada de abelha, que atrevidamente voou para dentro da minha camisola. Não foi uma experiência agradável mas quem já foi picada na boca consegue tolerar uma picadazita na barriga. Houve alturas em que pensei estar na Serra d'Arga. Apenas sem frio, sem chuva, sem vento e sem nevoeiro. Bem, em boa verdade, só as pedras eram parecidas com as de Arga. E ao longo de uns meros 1,5 km!
O calor fez-se sentir desde o primeiro momento mas, ainda assim, fomos brindados amiúde com uma brisa fresca que voou do mar até ao interior para nos refrescar. Valeu-me também a frescura da melancia nos 4 abastecimentos espalhados ao longo dos 25 km. Sorri quando acreditei ouvir aspersores de rega em pleno "nada". Concluí rapidamente que não eram aspersores, mas sim cigarras, claro. Um cano surgiu do nada, jorrando água límpida e fresca. Não hesitei em molhar o rosto, o pescoço e o buff. Se aquela água contivesse algum elemento indesejável o mais provável é que se manifestasse apenas no dia seguinte. Diz quem sabe.
Embora de altimetria bastante moderada, algumas das subiditas tiraram-me o fôlego e as forças. "Vai treinar, Susana!", ordenava eu, para dentro. Algumas falhas de marcação no percurso mas também algumas distrações da minha parte fizeram-me dar umas voltinhas extra e obrigaram a algumas paragens. Mas para quem nunca tem muita pressa estes são detalhes sem grande importância.
A meta lá estava e por lá encontrei muitas caras do costume que soube bem rever. As caras de Lisboa e não só, que aproveitaram o facto de estarem a banhos no Algarve para conhecer também o outro lado - o do sem barulho e sem néon a piscar.
Mais um excelente apontamento da Susana. E olhe que este assunto dos Trilhos no Algarve Serrano, já me tinha passado cá pelas ideias, quando em Abril, passado estive no Ameixial e dei umas voltinhas por aqueles barrancos da Serra do Caldeirão. Que linda prova daria para se fazer ali. Afinal fez-se. Mesmo não sendo ali, foi em idêntico cenário. Ainda bem que aproveitou. Beijinho.
ResponderEliminarMuito obrigada, amigo Fernando!
EliminarEste Algarve merece seguramente uma visita e se for com ténis de corrida, melhor ainda!
Um beijinho e até setembro!
Muito lindo o retrato que fizeste do «...quando vou ao Norte ... quando vou ao Sul...».
ResponderEliminarSoberbo, como era de esperar.
Obrigada, José! Lembrei-me de ti quando fui picada pela abelha mas felizmente deixou menos estragos esta abelha algarvia! Beijinho!
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