segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Trilhos no Algarve Serrano



A minha mãe é algarvia. O meu pai é de Penafiel. Eu nasci em Lisboa.
Quem é de Lisboa não é de coisa nenhuma. Desculpem-me a franqueza, mas é verdade.
Adoro Lisboa. Lisboa é linda. Mas não a sinto como minha. Nem como sendo dela.

Pelo contrário, quando vou ao Norte do País, sinto-me de lá. Sinto porque me lembro da avó Quina que fazia café de cafeteira que era de cheirar e chorar por mais. Sinto porque recordo a alegria das dezenas de Natais passados com as dezenas de primos e as dezenas de tios. Sinto porque recordo a imagem das várias dezenas de presentinhos espalhados pela casa da avó, no topo da lareira, nos parapeitos das janelas ou no chão, ocupando toda a sala. Eram pequeninos e pouco importava. Todos recebiam qualquer coisa. Mas isso foi há muito tempo. Hoje bastar-me-iam o bacalhau cozido com todos, o tinto, as dezenas de primos, as dezenas de tios e a avó Quina. Alguns já cá não estão. Mas não deixo de me lembrar deles quando vou ao Norte. De os sentir e de saber que algures, em qualquer lado, olham pelos que por cá ficaram e sentem que sentimos falta.

Quando rumo a Sul, e faço-o inúmeras vezes, sinto os três meses de férias de Verão passados em casa dos avós, sob o calor do Algarve Serrano. Recordo a "macaca", o "mata" e as "escondidas", que me valeram uma cicatriz no joelho que nunca desapareceu. Sinto o sabor do pão saloio quente com mel e as dores de barriga que me deixava depois. Sinto as histórias da avó Clarinha, que descrevia tudo com um detalhe que nunca conheci, mas nunca perdendo o "fio à meada". E sinto o silêncio do avô Brás, sentado no alpendre, a contemplar o dia a terminar e as últimas cantatas das cigarras que dariam lugar aos "gri gri" dos grilos. Por tudo isto, sinto a Serra Algarvia como sendo um pedacinho minha.

E foi com esta saudade de tempos idos que rumei no dia 16 de agosto a Salir, deixando para trás a aldeia algarvia dos avós, que agora é dos pais, que um dia será minha, depois dos meus filhos e, se assim for o seu desejo, dos meus netos. Chegaria o dia e chegou. Estaria presente na primeira prova de trilhos no Algarve Serrano. Dotada de algum juízo inscrevi-me na prova de 25 km, mas não deixei de assistir à partida dos atletas que se aventurariam nos 50 km. Aqueles que não receavam "cozer e assar no Caldeirão", tal qual o João Ratão.

Segui tranquila, apreciando as alfarrobas e as azeitonas caídas no chão. Portugal é tão pequeno mas consegue acumular tantas diferenças, de Norte a Sul.  Ainda não tinha atingido os 3 km e fui brindada com uma picada de abelha, que atrevidamente voou para dentro da minha camisola. Não foi uma experiência agradável mas quem já foi picada na boca consegue tolerar uma picadazita na barriga. Houve alturas em que pensei estar na Serra d'Arga. Apenas sem frio, sem chuva, sem vento e sem nevoeiro. Bem, em boa verdade, só as pedras eram parecidas com as de Arga. E ao longo de uns meros 1,5 km!

O calor fez-se sentir desde o primeiro momento mas, ainda assim, fomos brindados amiúde com uma brisa fresca que voou do mar até ao interior para nos refrescar. Valeu-me também a frescura da melancia nos 4 abastecimentos espalhados ao longo dos 25 km. Sorri quando acreditei ouvir aspersores de rega em pleno "nada". Concluí rapidamente que não eram aspersores, mas sim cigarras, claro. Um cano surgiu do nada, jorrando água límpida e fresca. Não hesitei em molhar o rosto, o pescoço e o buff. Se aquela água contivesse algum elemento indesejável o mais provável é que se manifestasse apenas no dia seguinte. Diz quem sabe.

Embora de altimetria bastante moderada, algumas das subiditas tiraram-me o fôlego e as forças. "Vai treinar, Susana!", ordenava eu, para dentro. Algumas falhas de marcação no percurso mas também algumas distrações da minha parte fizeram-me dar umas voltinhas extra e obrigaram a algumas paragens. Mas para quem nunca tem muita pressa estes são detalhes sem grande importância.

A meta lá estava e por lá encontrei muitas caras do costume que soube bem rever. As caras de Lisboa e não só, que aproveitaram o facto de estarem a banhos no Algarve para conhecer também o outro lado - o do sem barulho e sem néon a piscar.


terça-feira, 5 de agosto de 2014

Era uma vez, no Século XXI, em Óbidos


(foto de Bernardete Morita)

Numa vila pequenina, de seu nome Óbidos, um lindo castelo se ergue sobre um monte, outrora à beira mar. Já na pré-história este castelo despertara o interesse dos povos invasores da Península Ibérica, dada a sua proximidade à costa atlântica, tendo sido ocupado por Lusitanos, Romanos, Visigodos e Muçulmanos.

Ao segundo dia do mês agosto do ano de 2014, o Castelo de Óbidos foi palco de nova batalha e registou um importante marco na sua história: a reconquista por centenas de… corredores! Uns batalharam 27 km, outros 52 km, mas todos eles, do primeiro ao último a conquistar as muralhas, saíram vencedores.

Dentro de muralhas

Decorria o Mercado Medieval. Meninas, pequeninas e grandes, com os cabelos ornamentados com coroas de flores, passeavam-se exibindo os lindos vestidos da época. Os homens, com o seu ar rude, falavam alto, fazendo justiça pelas próprias mãos ou com recurso a um dos carinhosos instrumentos de tortura medieval. Confesso que me teria dado jeito, depois dos 52 km, aquele simpático “estica o esqueleto”, puxando ambos os braços e pernas. Mas, felizmente, as “tenazes” foram outras.

Pelas ruas, cheirinhos agradáveis de iguarias diversas a arder nas brasas faziam as alegrias dos mais famintos (e barrigudos, também).

Tudo decorria “medievalmente” quando, de repente, centenas de pessoas, dotadas de costumes algo estranhos, invadem a vila. Vestimentas coloridas (e curtas, deixando as camponesas a murmurar sobre o escândalo que seus olhos observavam), com nomes estranhos – Salomon, Asics, Kalenji e coisas que tais, nunca antes vistas, juntaram-se e apimentaram o reboliço que já se vivia.

Partida, largada e fugida, na Porta da Vila!

E houve de tudo naquela “batalha” travada pela gente colorida.
Houve tudo menos canhões, espadas ou instrumentos de tortura medievais.
Houve terra, cascalho, água e lama. Houve areia. Compacta e movediça. Houve a rugosidade das pedrinhas e a macieza da caruma de pinheiro. Houve subidinhas, descidinhas e estradões. Houve arribas junto ao mar e houve caminhos junto à lagoa. Houve silêncio e houve música dos anos 80, oriunda de uma tal Festa de Branco, na Foz do Arelho. Também houve o "zzzzzz" irritante das melgas e as marcas que me deixaram. Houve calor e houve chuvinha a bater no rosto, refrescando o corpo e despertando os sentidos, deixando os aromas mais apurados. Da terra, da vegetação e de várias flores de cheiro que fui tentando adivinhar pelo percurso. Houve fome e houve também "matar a fome", com os repastos que nos foram sendo oferecidos para retemperar energias - o melão ressuscitou-me três vezes.

Houve o escuro da noite. Gosto da noite. Gosto de correr e caminhar de noite. Acompanhada. "Mas... não se vê nada", muitos dirão. Estão enganados. Veem-se coisas "que eu sei lá". Até se veem coisas que não existem! Mas houve também para mim, para nós, o amanhecer. Recordo-me de um momento em particular, quando o Rui seguia uns metros à frente, numa ligeira subida num estradão que atravessava um pomar. Via apenas o seu contorno, numa manhã que acordava, com aquela luz azulada que permite a definição de contornos como nenhuma outra. Pena não ter registado o momento.

Por falar em pomar... Houve furtos. Eu não sou de acusar ninguém, mas seguia apenas eu e o Rui e posso confirmar que houve furtos. Não havia mais ninguém e uma árvore ficou menos pesada. Eu asseguro que não colhi peras das árvores, mas comi duas. E agora?! Quem desvendará este caso de polícia bicudo que colocará o presumível culpado numa qualquer forca medieval?

Às 6 da manhã houve o sino da igreja. Quem leu o meu mais recente texto, "A Corrida e as Leis de Murphy", sabe do que falo. O sino da igreja, a meta quase a chegar, mas o quase a tardar. Aqueles dois últimos quilómetros foram dos mais longos da minha vida. Quando avisto as escadas que nos conduzem ao castelo sei que está quase. Já as tinha subido há um ano, na versão mais curta da batalha.

Está aqui alguém?

Chegamos à entrada, o Rui dá-me a passagem e ofereço um "truz truz... bom dia!" aos simpáticos resistentes que aguardam os derradeiros atletas. Antes de qualquer coisa, olho para a direita à procura delas. Das marquesas. Era ali que estavam há um ano e eu sabia que em 2013 a Helena e o Rui Queixada não haviam arredado pé sem que chegassem os últimos atletas. Recebi o meu prémio de finisher, nada comi ou bebi e segui direta para uma massagem a quatro mãos, vigorosa e penosa, mas que sei ter permitido que no dia seguinte acordasse sem grandes mazelas.

Era uma vez…

Os "era uma vez" dos tempos modernos são definitivamente diferentes dos de antigamente. Tive um cavalheiro sempre, e pacientemente, a meu lado. Não o esperei no castelo. Ter-me-iam faltado as tranças "Rapunzel" para as lançar da torre. Em vez disso, percorri o caminho de 52 km em 10 horas e uns minutos mais, com ele, para lá chegar. E que bem que soube!



sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A Corrida e as Leis de Murphy



Há tempos havia-me debruçado sobre este assunto, mas arrumei-o. Hoje voltou a cruzar-se no meu caminho e não consegui ficar-lhe indiferente.
Murphy era corredor. Ninguém me disse. Não li em lado algum.
A única coisa que por aí se diz é que Edward A. Murphy Jr. terá sido um major e engenheiro da Força Aérea Americana na década de 40.
Eu sei mais que isso. Eu garanto que este senhor ocupava os seus tempos livres a correr… e na montanha!

Senão, vejamos…

Um atalho é sempre a distância mais longa entre dois pontos.
A meta está ali. Bem perto. À direita. Até ouvimos os sinos da igreja da vila a tocar. Ouvimos também os aplausos. No entanto, é certo que alguém da organização responsável pelo desenho do percurso nos vai colocar a "atalhar" pelo caminho mais improvável, com pelo menos mais 5 km, antes de lá chegarmos.

Tudo leva mais tempo do que todo o tempo que tens disponível.
Sem dúvida. Eu sei disso melhor que ninguém. Faço contas à vida, ou melhor, ao tempo, quando vou para a montanha. É certo que os 10 min/km para percorrer o percurso de rio na Serra da Freita são um absoluto exagero quando os defino em casa. 10 min/km é um verdadeiro absurdo. No local do crime a progressão será, na melhor das hipóteses, a 15 min/km.

Acontecimentos infelizes ocorrem sempre em série.
É certo que num mesmo dia, numa mesma prova, deixemos cair o telemóvel ao rio porque tirávamos uma selfie. De seguida percamos parte da sola da sapatilha porque uma raíz estava no local errado, à hora errada. Está um calor insuportável e ficaremos sem água no camelback. E assim sucessivamente. Em série.

Em qualquer fórmula, as constantes (especialmente as mencionadas nos manuais de engenharia) deverão ser consideradas variáveis.
Mas há dúvidas? Ultra Trail com 50 km. Pois sim. No mínimo serão 55. Trail com 25 km. Claro. Serão no mínimo 28 para aqueles que tiverem a sorte de não perder de vista uma fita de marcação semi-escondida. Não há dúvida quanto ao rigor e precisão científicas dos GPS utilizados pelas organizações de provas em montanha!

Encontrarás sempre aquilo que não procuras.
Vais encontrar lixo na floresta. É triste, mas é verdade. Vais encontrar invólucros de barras de cereais, embalagens de gel, lenços e coisas que tais. Mas a fita que te indica o caminho certo… essa já terá sido removida!

Se te estás a sentir bem, não te preocupes. Isso passa.
Corres a bom ritmo, estás confiante. O piso é técnico mas estás a voar sobre as pedras. Escorregas mas consegues habilmente vencer uma queda no chão. És um super-atleta. Tem calma. Isso passa. Ainda faltam 41 km e 3500 D+ até cruzares a meta.

A Natureza está sempre a favor da falha.
A pedra inanimada que se atravessa no teu caminho terá sempre o movimento suficiente para saltar e te bater na canela. A rocha que atravessas será sempre mais escorregadia do que prevês e acabarás com o nariz esmurrado. A raíz da árvore que surge por debaixo das folhitas terá sempre mais 10 cm do que esperavas. A altura da água do rio será sempre maior do que o que previas e o banho será inevitável. A Natureza adora pregar partidas.

Um morro nunca desce.
Não importa para onde vais. Será sempre morro acima e contra o vento. Ou se calhar o morro até desce, mas depressa concluirás que afinal foi mais fácil subi-lo do que descê-lo, no momento em que os teus joelhos começarem a pedir misericórida e descanso.

O dia de hoje foi realmente necessário?
Quantas vezes te questionas “o que faço aqui?” ou “porque não fui para a praia?”. Quantas e quantas vezes, enquanto corres na montanha, resmungas e proferes palavras que não ensinarias às crianças? O problema… o problema é que quando cruzas a meta, uma estranha sensação de esvaziamento de más sensações e dores acontece, sorris e pensas na próxima!


Bom descanso, boas corridas, boas férias!