terça-feira, 28 de julho de 2015

Suspiros e muitos "ais" no Monte da Lua

(texto originalmente publicado no JN Running, com título "De Mãos Dadas até Tocar na Lua")




“Mais do que a dor, é a beleza que me faz chorar”. Li estas palavras um dia depois dos 28 km do Monte da Lua, em Sintra. A frase da escritora Maria Teresa Horta titulou os pensamentos que me assolaram bem lá no alto, quando recuperava o fôlego, depois de mais uma arriba subida, já depois de ter descido outra, com as falésias e o Oceano Atlântico como pano de fundo. Aos meus pés milhares de chorões cobriam as falésias que se estendem desde antes do Cabo da Roca, até à Praia das Maçãs, onde a meta me esperava. Chorões carnudos. Isso. Um só se terá instalado ali há muito tempo, mas tanto chorou perante tamanha beleza, que depressa se multiplicou nos muitos milhares que por lá moram agora. Sim, a beleza faz mesmo chorar mais do que a dor.
Sabes no que pensei, Rui? “Caramba, já devia ter vindo aqui pelo menos duas vezes. Uma vez para conhecer, a segunda para percorrer estes trilhos com o Rui”.
E assim foi. 28 km por caminhos que praticamente desconhecia. A vertente Norte da Serra de Sintra que ainda permanecia por calcorrear e que não só me ofereceu um banho turco com níveis de humidade que deveriam atingir os 80% e o cheiro a eucalipto que quase embriagava, como também um tratamento com terra molhada num fantástico downhill, que fez subir os níveis de confiança e apressar a passada da corrida, destemida, feliz. Caramba, que prazer me deu. Também passaste por lá depois, e muito mais viste do que eu. Fala-me disso tudo. Dos 26 km que não fiz, da Quinta da Regaleira e da Quinta do Relógio. Do Castelo dos Mouros. E das pedras que dão nome à prova e que brilham ao luar. Fala-me Rui, fala-nos disso tudo, que não queremos perder pitada. E em 2016 lá estaremos todos, para viver uma história como hoje vais contar.
“A Xintra (com “x”, porque os árabes não pronunciam o “S”) que encantou os mouros, que por sua vez encantaram Sintra, tem estórias por todos os seus recantos. A sua história começou a ser escrita há milhões de anos, quando ainda era um vulcão, e cuja lava foi desenhando socalcos até aos pontos mais baixos da serra. A ocidente a crista mergulha abruptamente no fundo do mar, deixando atrás, entrelaçada arborização rematada por arribas e falésias.
Os mouros, encantados com as pedras “barâd” (fosforescentes), que brilhavam na noite, chamaram-lhe monte da Lua, pelo efeito luminoso refletido na constante bruma que a cobria. O ônix, considerado por persas e hindus como protetor contra as más vibrações, o âmbar de primeira qualidade, semelhante ao melhor do mundo – o “xajari” da Índia – e todas as grutas subterrâneas que adensam mistérios, lendas e fábulas, dão a Sintra uma áurea misteriosa e encantada.

Da Praia das Maçãs à Vila, sim, foi um banho turco. Humidade elevada, tão elevada, que quando passávamos de alguma zona exposta ao sol para a sombra da densa arborização, víamos água a pingar no trilho. Subir a encosta de Colares, tentado descobrir onde teriam vivido os monges, que para ali iam viver do que a terra lhes dava. Depois veio Sintra, e a sua história, de reis e rainhas e gente que se rendeu à sua beleza. Na Quinta do Relógio há um sobreiro coberto de fetos, há lagos cobertos de nenúfares e há recantos com bancos de pedra trabalhada. Há história talhada nas paredes do edifício abandonado em obras de restauro. Os palácios de outrora, hoje contadores de lendas românticas, montras de excentricidade desenhada por caprichos milionários, cujo expoente máximo é a Quinta da Regaleira, onde mergulhamos no poço iniciático e serpenteamos anjos de pedra e árvores centenárias e turistas, surpreendidos por gente a correr num cenário onde tudo convida a deter. Ali ao lado, lá no cimo, esperava-nos o Castelo dos Mouros. Fomos por onde só havia gente a escalar. E pingava humidade. Atletas que se perdiam voltavam ao trajeto a sorrir. Cheirava a madeira molhada. Todas as árvores transpiravam. E nós, encharcados com tamanha beleza, mergulhados no suor da subida, inebriados por toda aquela selva magnificente, bebíamos história sem o saber.
D. Afonso Henriques, quando conquistou Sintra aos mouros, deu-lhes tempo para se renderem. Chegado ao castelo não encontrou vivalma. Há todo um conjunto de túneis que levam para bem longe dali. O conquistador não sabia, mas há por baixo da Serra grutas e rios que ligam o alto até à Lagoa Azul ou a Rio de Mouro. E assim nasceu uma lenda. E outras lendas nasceram destas secretas passagens, sendo a mais conhecida a da “Moura dos Sete Ais” (Seteais), que deu sete suspiros por um cavaleiro cristão que a deteve quando tentava fugir com outros mouros por uma porta secreta do castelo.
Mas mais que 7 “Ais” havíamos de dar no que ainda vinha de prova. Um serpenteado de trilhos a descer e a subir, de cortar a respiração pelo que exigiam de esforço, e principalmente pela beleza e paz que induzem. Um troço de 12 km que culminou com uma subida a pique e sob sol abrasador ao ponto mais alto da prova, a Peninha, donde se avista o fim da terra e o início do mar. “Paraíso Terreal”, constava no título do acordo que Ibne Arrique firmou nesta confluência de maravilhas da natureza e onde o homem deveria coabitar em paz. Vista dali, da Peninha, percebe-se que não haja quem queira desembainhar uma espada numa serra que alberga tanta vida. E desaguamos também nós, os dos 52 (53, 54?) como vós, os dos 26 (27, 28?), por um trilho onde voltava a pingar humidade das árvores entrelaçadas, que nos protegiam do calor vespertino.
Chegados então ao ponto onde a beleza faz chorar mais do que a dor, como tão bem descreves, foi sim, esse desenrolar de trilhos arriba e abaixo junto a uma costa que nos faz sentar e contemplar.
Estranho, Susana, não é que não tenhas sido tu a mostrar-me tudo aquilo. Estranho é que o Mundo não possa desfrutar de tudo aquilo, de toda a beleza de uma Sintra encantadora e que a Horizontes nos serviu. Estranho é que as autoridades não deixem realizar esta prova nos meses em que é impossível fazer trail nas Serras mais altas da Europa, e onde Portugal devia e podia ser o refúgio de muitos. Mas Sintra, onde se acarinham filmagens de novos modelos de automóveis – vedando acessos onde as realizava, em pleno Parque Natural -, não permite a realização desta mesma prova no Inverno, quando seria mais fácil atrair gente de outras paragens. Estranho.
Fica a memória de uma prova única. Equilibrada, com largas zonas para correr, excelentes trilhos para sofrer e arribas de cortar a respiração. Início belíssimo e fim a condizer, numa praia famosa pelas suas enormes maçãs, e onde o que mais importa é mesmo o trail. Não achas?
Se acho? Claro que acho isso tudo que escreves tão bem e eu não sei (de)escrever. Obrigada a ti, por esta magnífica estória, cheia de história. E à Horizontes, por nos fazer trilhar tão bela viagem, aqui tão perto, nesse vulcão adormecido, cheio de segredos escondidos.

Autores: Rui e Susana

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Serra da Freita depois do Pôr-do-Sol




Uma peregrinação (do latim per agros, isto é, pelos campos) é uma jornada realizada por um devoto de uma dada religião a um lugar considerado sagrado. Com as devidas adaptações, fui peregrina na Serra da Freita. A família representava a minha religião. O lugar sagrado seria a meta, 65 km e muitas horas depois, mergulhada, literalmente, na montanha que podia ser o paraíso que dizem existir depois de sairmos deste mundo. Um sacrifício muito mais prazeroso do que penoso para mim, como sabem.

Acabei de chegar ao abastecimento da Lomba, depois de um maravilhoso mergulho na cascata que o antecede. Pousei a mochila. Mergulhei. Nadei até à cascata. “Caramba, como sou uma pessoa com sorte”, pensei. Demorei-me um pouco. Revigorada, subi os metros que faltavam até ao abastecimento, onde sou simpaticamente recebida. Enquanto mordo meia bifana, surge o primeiro atleta dos 100 km, de seu nome Marcolino Veríssimo. Felicito-o e pergunto: “mas não tomaste banho ali em baixo, pois não?”. O Marcolino responde que sim, e antes também, e que não prescindiria dos banhos que já leva consigo. Sorri e rapidamente caiu por terra a teoria que os “cá de trás” é que se divertem e desfrutam dos trilhos. Afinal, os supersónicos também mergulham. Saiu do abastecimento antes de mim. E eu segui depois o meu caminho. Faltavam 22 km e a fantástica, mas também penosa, subida da Lomba.

Cerca de 11 horas antes, o José Moutinho anunciava a largada para as provas dos 65 e 100 Km, lá longe, em baixo, em Arouca. Uma multidão de gente e garanto desde logo o último lugar. A Júlia Conceição vem ter comigo – logo aqui penalizei fortemente o meu tempo de chegada à meta - e dá-me um beijo de boa sorte. Continuo pela estrada de alcatrão pensando que o mundo anda mesmo todo trocado – ora então a super-atleta vem ter comigo e não o contrário? Obrigada, Júlia! És muito mais querida que a Querida Júlia da TV (e não preciso de conhecer a outra pessoalmente).

Descobri como pode ser diferente a Freita, consoante o São Pedro nos brinde com chuva ou sol. Há um ano, a chuva e as pedras molhadas haviam sido o meu maior calvário. Este ano, não perdi um único charco, tanque, ribeiro, “Sr. Teixeira” ou cascata. Pasmem-se: consegui deitar-me numa levada e garantir um banho quase integral!

Sempre na cauda do pelotão (só passei para o brilhante antepenúltimo lugar, depois dos 35 km), fui partilhando os primeiros quilómetros com a Patrícia, que prescindiu de correr como tão bem sabe fazer, para me acompanhar. Só em Manhouce, já com 35 km de prova, consegui que seguisse o seu caminho. O passo seguinte era a ameaça com os meus bastões, pelo que creio que se pôs em sentido e percebeu que posso ser perigosa.

Mas antes disso, antes de Manhouce, da sua fantástica equipa de voluntários (bem vistas as coisas, não consigo indicar voluntários que não o tenham sido!), do tomate com sal e do café da Carmen, antes disso, escrevia eu, tínhamos vivido 35 km de trilhos variados, marcados por muitas subidas, muitas pedras, as pedras que tanto gosto e que dariam um lindo padrão para vestidos, as pedras que devem ter um nome que desconheço, mas que são em tons de prata e dourado, lindas pedras, e ainda outras pedras… as pedras da Besta.

Não. Não fui eu quem chamou besta à Besta. De resto, foram 65 km sem palavras indignas, sem insultos à montanha ou a mim própria, sem questionar o que ali tinha ido fazer. Creio que os Acordos de Paz se deveriam fazer na Serra da Freita. Impossível sair dali sem uma desmesurada vontade de praticar bem e melhor. Impossível.

Mas falava eu das pedras da Besta. Levava comigo a grande vontade de a subir. Tantas perguntas fiz ao Rui sobre a Besta. “E tenho altura de perna para subir?”, “e escorrega?”, “e posso cair?”, “e está muito exposta ao sol”?, “e se (…)?”. Obtive todas as respostas, 1 hora depois de iniciar a sua subida. Repito. Sessenta minutos para percorrer 1,5 km, pedra após pedra, usando todas as partes do meu corpo – como gostaria de ter um registo fotográfico da minha elevação numa delas, demasiado alta para o curto tamanho das minhas pernas! Se na meta me tivessem apresentado um livro de dedicatórias, teria pedido aos confrades da Confraria Trotamontes que tanto gostam de surpreender todos os anos com as suas inovações, que levassem o que quisessem do UTSF 65 km, mas não a Besta! Deixem-me subir a Besta de novo!




Tinha sido avisada que a subida da Lomba me cansaria mais do que a Besta. Cansou sim, é verdade. Fazendo algumas pausas pelo caminho, ia vendo pela frente o que me faltava, espreitando atrás o que já havia percorrido. Estou cansada, mas o que vejo é tão bonito! O telemóvel dá sinal de alerta. A Ivete do lado de lá, chegando no exato momento para me dar o empurrão que falta. Logo a seguir, chega o segundo atleta, literalmente de elite, o João Oliveira. Pergunto-lhe se é mais difícil do que a Spartathlon e deixa-me com um sorriso, subindo, correndo, Lomba acima.

Depois disso, o caminho começa a ser familiar, com o PR7 debaixo dos pés, a Mizarela desta vez lá longe à esquerda, as vertigens que não tenho habitualmente a darem o ar da sua graça, o trilho que me conduzirá ao Merujal e à sua casa de pedra. Este ano a casa de pedra não representa a meta, mas recebo os aplausos simpáticos de quem lá está, e que me felicita como se fosse a primeira classificada de qualquer coisa fantástica. A medalha e mais aplausos viriam depois, pelas mãos e sorriso da fantástica Flor, em Arouca, 13 km adiante.

Senti saudade dos Incas, dos três pinheiros e depois dos Aztecas, confesso. Mas não eram saudades que quisesse matar. A saudade sabe bem e o UTSF esteve perfeito assim. E ficaram as duas civilizações e as três árvores alinhadas ao topo do monte registadas nas memórias de 2014.

No Merujal recarrego baterias e cruzo-me com um casal que repousa no parque de campismo. Haviam feito a caminhada, esclareceram. Respondo que também fui caminheira, apenas numa distância um pouco mais longa. Coloco o frontal para o que falta, uma viagem com o sol a pôr-se, e os contornos na montanha com definição HD.

Pelo caminho, fui recordando as histórias que já nos escreveram o Rui Pinho e o João Paulo Meixedo sobre a Serra da Freita. As palavras a fazerem sentido. As experiências relatadas agora vividas por mim. Lembrei-me também do texto de um autor cujo nome não me recordava, e que agora sei tratar-se do Miguel Serradas Duarte, escrito em 2013, intitulado “Eu não fiz a Freita, a Freita fez-me a mim”. Não sei o que tinha o Miguel em mente, mas eu não escolheria melhor título para esta minha aventura.

Diz-nos o dicionário da língua portuguesa que fazer significa, entre outras coisas, “dar existência” e “levar alguém a perceber ou sentir algo”. Pois bem. A Serra da Freita deixou em mim um conjunto de sentimentos bons, de sensação de esvaziamento do que não faz bem, de agradecimento. Creio ter sido das minhas mais fantásticas “peregrinações” fora dos “palcos” habituais para o efeito (que nunca usei, confesso), e com a melhor das motivações, que encontrei logo na fase inicial do meu percurso, na manhã de dia 27 de junho.

Mãe, mamã, Zezinha, sendo difícil, porque sou realmente uma “bem equipada mas fraca atleta”, chegar à meta nunca foi tão fácil, por te saber curada.