terça-feira, 8 de agosto de 2017

Le Tour du Mont Blanc



Aos 41 anos matei a ilusão de que as vacas dos alpes são lilases. Não são. São pretas, castanhas, com pinta(s) ou sem ela(s) e fazem chichis grandes e feios, sem pudor.

Com ou sem "milkas", percebi que teria que palmilhar os trilhos do Monte Branco no verão de 2013. Num jantar de amigos em casa do Pedro Quina vi pela primeira vez o filme promocional do UTMB. Fiquei deliciada e agarrada a um cenário em especial. Via os atletas subir o que parecia ser uma interminável "parede", uma tenda amarela, e depois a descida, "prado" fora. Quatro anos depois sei que aquele "topo" se chama Arret du Mont Favre e foi nesse mesmo local que o cume do envergonhado Monte Branco se revelou pela primeira (e quase única) vez nesta viagem de 7 dias.

O Tour do Monte Branco é para todos. Dos 8 aos 80. E foi precisamente isso que presenciei ao longo destes dias. Centenas de caminheiros a partilhar trilhos. Umas vezes energia, outras fadiga, mas sempre um sorriso no rosto, vagar de sobra para um "bonjour", "ciao" ou "pas de soucis" com quem nos cruzávamos pelo caminho. 

A célebre citação "a terra é redonda para não sabermos o que nos reserva o caminho" deve ter encontrado inspiração por aqui. Depois da subida a um qualquer "col" a que não vemos o fim, logo se seguia a descida a mais uma "vallée".

Ao Col du Tricot, que também poderia ser o Cume da Trança pelo ziguezague no trilho, logo se seguiu a belíssima vista sobre o Glaciar de Bionnassay a mostrar que isto tudo terá mesmo começado com o Scrat e a sua irrequieta noz na Idade do Gelo.

Horas depois viria a subida ao Col du Bonhomme, debaixo de chuva, vento e granizo, a gelar-nos mãos e pés e a mostrar que é a montanha quem manda. Poderíamos ter seguido nesse segundo dia para Saint Tropez, na medida em que um maluco português, cujo nome não revelarei, decidiu anunciar no Refúgio de La Croix de Bonhomme que quase fica no fim do mundo, que o shuttle partiria em 10 minutos ("Saint Tropez, dix minutes!"), roubando gargalhadas aos mais tímidos e gelados caminheiros que se tentavam aquecer. Mas resistimos.

Resistimos para no dia seguinte ter um pé "na" França e outro em Itália, depois de atingido o Col de Seigne, não sem antes contar 452 carneirinhos no Vale des Glaciers. A chuva partiu e nós também, rumo ao Vale Vény, chegando depois ao Lago Combal, barreira natural da moreia do Glaciar du Miage. Chegámos nós e 345.224 chineses ou coreanos ou gente de olhos em bico que estão por todo o lado, saltam debaixo das pedras, nascem como cogumelos e tiram fotos a cada 10 segundos - olha a novidade! Olhámos os olhos (!) em bico com inveja, porque caminhavam sem peso às costas. As mochilas iam de táxi, vejam só. Olha se eu alguma vez pagaria viagem de táxi à minha mochila e eu iria a pé. Mochilas com vidas de luxo, é o que é!

Mais uma voltinha, mais uma subida e encontrámos a melhor esplanada do percurso, a Maison Vieille. O nome é francês, mas estamos em Itália e a carta do ristorante do refúgio enche-nos as medidas. Pasta, pasta, pasta! Que rico almoço. Linda descida pelo bosque e eis que chegamos a Courmayeur, civilização a custo não suportável por portugueses, arregalamos os olhos, remexemos e vemos tudo o que não iremos comprar, mas trazemos connosco o buff do Tour do Mont Blanc para usar no último dia. Mas antes disso ainda faremos a magnífica subida ao Grand Col Ferret, onde Itália e Suíça se tocam. Esta subida-nunca-mais-acaba tira-nos o fôlego pela dureza e beleza. Para melhor chegarmos ao topo, o Rifuggio Elena reserva-nos o melhor chocolate quente, para depois, bastante tempo mas poucos quilómetros palmilhados depois, festejarmos a ascensão a mais um cume. O dia ainda não tinha terminado e a descida do Vale Ferret até La Fouly faz-nos não querer parar, por entre prado, single tracks rodeados de árvores e flores, de todas as cores. Uma delas, diz-nos o Gonçalo que nos guia desde o primeiro dia, chama-se "femme au réveille". Perguntei se era por ter um look despenteado. Acertei.

A viagem não termina sem a passagem pela Buvette de Bovine, esplanada com vista a rivalizar com a Maison Vieille, e o seu melhor bolo sem chocolate do mundo. Pedimos a receita que nos foi gentilmente cedida. Agora é com a Gi e as suas mãos talentosas para a doçaria.

Em Trient o esforço do dia foi recompensado com um delicioso fondue de queijo que deixou naturalmente reservas para o último fôlego, no dia seguinte, para a magnífica subida ao Col de Balme e então avistarmos o grande vale de Chamonix aos nossos pés.

Nestas aventuras as metas não têm pórticos, mas eu e a Gi registámos o momento como se de uma ultramaratona se tratasse. Inesperadamente houve "medalha", com a calorosa receção já em Lisboa, no aeroporto, das fantásticas duas esses, que nos receberam efusivamente, com balões, chá quente e biscoitos. E prémio de finisher pois então.

Obrigada Gi, Monsieur Otto, Gil, os simpáticos Rita e Gonçalo, os sensatos Fernanda e Mário e o valente super-Mário.

Um agradecimento especial ao Gonçalo Silva e à Outside, que tão bem nos guiaram.
Devagar espero chegar longe.