sábado, 15 de novembro de 2014

"Truz, truz, cheguei", disse o 39




Acho que já vos tinha dito. Gosto de fazer anos. É sinal que estou viva.

Gostava de fazer anos quando eram só 7 e convidava para a festa de aniversário 2/3 dos meninos da Base Aérea nº 4, nas Lajes, onde vivi quando era criança. Gostei de fazer 10 anos porque cheguei aos 2 dígitos. Gostei de fazer 12 porque pude começar a assistir a quase todos os filmes nas salas de cinema. Gostei de fazer 16 porque assim já poderia conduzir a vespa 50 CC que nunca tive. Gostei de completar 18 anos porque atingi a maioridade (e ganhei uma carta do meu pai debaixo da almofada). Gostei de fazer 25 porque representava um quarto de século. Gostei de fazer 33 porque gosto do algarismo 3 e consegui dois de uma vez. Em suma, sempre consegui encontrar encanto em todas as idades que por mim foram passando.

Tenho uma teoria. Desenvolvi-a nos últimos dias. Para ser mais precisa, ocorreu-me no duche, enquanto o jato de água me despertava de um sono de 7 horas, povoado de sonhos turbulentos. Se hoje completo 39 anos, então a vida começa hoje (depois das 10:30, hora em que nasci) e não no ano que vem.

Passo a explicar.

Todos dizem que a vida começa aos 40. Errado. A vida começa quando completamos 39 anos de existência e entramos no quadragésimo. Completando 39, concluo que já entrei nos 40 e, portanto, a vida começa agora. Hoje mesmo.

Mas então, se assim é, sou obrigada a concordar com a Mafaldinha (sim, a do cartoonista Quino) - se começa agora, porque raio vim a este mundo tantos anos antes? Será que a vida só agora começa? Só agora é que vai ser a valer? Não sei o que me reservará a vida que não me tenha oferecido ainda nestes 39 anos que já passaram.

Nem sempre foi bom, mas foi precisamente por não ter sido sempre bom que soube valorizar quando o foi. Não mudaria nada do que vivi. As alegrias e as tristezas. As conquistas e os fracassos. As certezas e os enganos. As opções tomadas e as não opções, mas resoluções que outros tomaram por mim. Os caminhos desbravados e os caminhos a direito, sem obstáculos. Não mudaria nada. Até a vespa 50 CC que nunca tive. Ainda bem que o meu pai não o permitiu. Também não será o tipo de presente que pretenda oferecer aos meus filhos.

O segredo do meu "sucesso"? Depender de muita coisa para fazer por ser feliz. Sim, muita coisa mesmo.

A família. É com parte dela que escolhi estar neste dia 16 de novembro, a 229 km de casa. A minha querida família. Desde sempre comigo. E para sempre, sei-o bem.

Os amigos. Os com quem joguei ao mata na noites de verão na Serra Algarvia. Os que cresceram com a "canina" no colégio. Os que vieram mais tarde e com quem partilhei os momentos mais desafiantes da vida escolar - os integrais triplos e a transferência de energia e massa no IST. Os com quem partilho o gosto pelos aviões e aeroportos. Os que encontrei por aí, porque a vida assim determinou. E os mais recentes, que partilham o gosto pela corrida.

A corrida. Sim, é verdade. Faz-me feliz e creio que já tinham desconfiado. Trouxe-me muita coisa boa. E levou-me a outras melhores ainda.

O polvo à lagareiro da Zé. O risotto do Di Casa. O cheesecake da Sofia. Os croissants d'A Padaria Portuguesa. O tinto. As framboesas.

Os romances no papel. As gerberas. Os vestidos.

A música. Que bom poder ouvir a M80 e vibrar com temas como "Boys of Summer" ou "Karla with a K". Não vibraria se não contasse já com estes 39 que carrego comigo.

Não me importo de envelhecer. O único problema em "crescer" é que há pessoas que nos levam algum avanço e que crescem também. E não queremos que "cresçam" mais porque, se assim for, terão que nos deixar mais tarde. Mas eles partem e nós também. E fica a saudade. A saudade e a lembrança. E recordar é viver, pelo que continuam vivos. Mesmo que apenas através da lembrança. Ou na moldura lá em casa. Ou na imagem que temos de nós próprios ao volante do primeiro automóvel que conduzimos e que os avós nos presentearam com um laço no capot. Ainda hoje me lembro daquele dia de Natal, em que acordei ainda antes das 8 da manhã e desci para a rua para sintonizar a Rádio Cidade no meu VW Polo azul. O que me levaria a tantos sítios depois. A minha liberdade. Curiosamente, alguns anos mais tarde, viria a descobrir que me bastam duas pernas para dela poder usufruir.

Queridos 39 anos, estes. Agora, para ser perfeito, falta apenas a carta debaixo da almofada do meu pai com os ensinamentos e as recomendações para os próximos 30 anos. Quem sabe lá apareça esta noite.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Mamã, quero ir para uma escola de corrida!



“Mamã, quero ir para uma escola de corrida”, disse-me a Inês, depois de concluir os 1.000 metros no AXTrail Kids na Serra da Lousã e arrecadar um brilhante segundo lugar. Sorri. Que bom é quando as alegrias dos filhos são as alegrias dos pais, mas quando o contrário também se verifica. Levei a Inês para uma versão “kid” de montanha e a Inês quer continuar. Falo da Inês, mas o Diogo também lá estava. Não foi ao pódio, mas pouco faltou. No entanto o Diogo prefere o ténis à corrida e não fico menos satisfeita por isso.

As mulheres-mães não são melhores do que as que não o são. Mas são mulheres diferentes, dotadas de uns quaisquer super-poderes especiais. Ainda há dias li um artigo sobre empresas que recrutavam mamãs com bebés pequenos. Aparentemente está provado que são as melhores gestoras em planeamento e tempo no mercado de trabalho.

Não cresci a desejar ser mãe. Só descobri como era bom ser mãe depois de o ser. Não ficava derretida com os bebés dos outros. Só quando eram bebés verdadeiramente bonitos. Rechonchudos e carequinhas. Que fazer? Sou sensível a bebés bonitos. Mas depois fui mãe. Uma vez e mais outra. E, quando somos mães, somos todas iguais. Ficamos acordadas a ver se o bebé respira. Provamos a sopa para ver se está quente. Limpamos os cocós e xixis dos nossos bebés sem complexos porque são os únicos que não cheiram mal. Rapamos os restinhos que deixam no prato sem “mete nojo”. Falamos “bebéês” com os nossos filhos e não nos importamos que pensem que somos tontas por o fazermos. Ficamos nervosas no primeiro dia de escola. Ficamos deprimidas quando começamos a ouvir falar em qualquer coisa terminada em “ite”. Desabafamos com as amigas-mães sobre o que nos inquieta. Sobre as coisas maravilhosas que os nossos filhos fazem ou dizem. Sobre as coisas menos boas que fizeram ou disseram. Sobre o quão maravilhoso é ser mãe mas também o quão difícil é conseguir chegar a todo o lado. Mas uma coisa é certa. Balanços feitos, no final do dia, quando estão deitados e os observamos nas caminhas com a sua respiração suave, concluímos que não mudaríamos nada e que não saberíamos estar nesta vida não sendo mães.

Serve este texto para dizer que não corri, não me cansei, não contraí qualquer empeno (exceção feita ao já adquirido há meses no joelho e que me obrigou a parar por uns tempos contra vontade). Não revi a beleza que a Serra da Lousã oferece. Não subi nem desci montes. Desta vez não precisei. O entusiasmo a equipar a Inês e Diogo com as minhas meias de compressão, vê-los a correr e sujar os pés na lama e no final devorarem gomos de laranja… devolveu-me a alegria de viver a montanha e de cortar uma meta!

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Trilhos no Algarve Serrano



A minha mãe é algarvia. O meu pai é de Penafiel. Eu nasci em Lisboa.
Quem é de Lisboa não é de coisa nenhuma. Desculpem-me a franqueza, mas é verdade.
Adoro Lisboa. Lisboa é linda. Mas não a sinto como minha. Nem como sendo dela.

Pelo contrário, quando vou ao Norte do País, sinto-me de lá. Sinto porque me lembro da avó Quina que fazia café de cafeteira que era de cheirar e chorar por mais. Sinto porque recordo a alegria das dezenas de Natais passados com as dezenas de primos e as dezenas de tios. Sinto porque recordo a imagem das várias dezenas de presentinhos espalhados pela casa da avó, no topo da lareira, nos parapeitos das janelas ou no chão, ocupando toda a sala. Eram pequeninos e pouco importava. Todos recebiam qualquer coisa. Mas isso foi há muito tempo. Hoje bastar-me-iam o bacalhau cozido com todos, o tinto, as dezenas de primos, as dezenas de tios e a avó Quina. Alguns já cá não estão. Mas não deixo de me lembrar deles quando vou ao Norte. De os sentir e de saber que algures, em qualquer lado, olham pelos que por cá ficaram e sentem que sentimos falta.

Quando rumo a Sul, e faço-o inúmeras vezes, sinto os três meses de férias de Verão passados em casa dos avós, sob o calor do Algarve Serrano. Recordo a "macaca", o "mata" e as "escondidas", que me valeram uma cicatriz no joelho que nunca desapareceu. Sinto o sabor do pão saloio quente com mel e as dores de barriga que me deixava depois. Sinto as histórias da avó Clarinha, que descrevia tudo com um detalhe que nunca conheci, mas nunca perdendo o "fio à meada". E sinto o silêncio do avô Brás, sentado no alpendre, a contemplar o dia a terminar e as últimas cantatas das cigarras que dariam lugar aos "gri gri" dos grilos. Por tudo isto, sinto a Serra Algarvia como sendo um pedacinho minha.

E foi com esta saudade de tempos idos que rumei no dia 16 de agosto a Salir, deixando para trás a aldeia algarvia dos avós, que agora é dos pais, que um dia será minha, depois dos meus filhos e, se assim for o seu desejo, dos meus netos. Chegaria o dia e chegou. Estaria presente na primeira prova de trilhos no Algarve Serrano. Dotada de algum juízo inscrevi-me na prova de 25 km, mas não deixei de assistir à partida dos atletas que se aventurariam nos 50 km. Aqueles que não receavam "cozer e assar no Caldeirão", tal qual o João Ratão.

Segui tranquila, apreciando as alfarrobas e as azeitonas caídas no chão. Portugal é tão pequeno mas consegue acumular tantas diferenças, de Norte a Sul.  Ainda não tinha atingido os 3 km e fui brindada com uma picada de abelha, que atrevidamente voou para dentro da minha camisola. Não foi uma experiência agradável mas quem já foi picada na boca consegue tolerar uma picadazita na barriga. Houve alturas em que pensei estar na Serra d'Arga. Apenas sem frio, sem chuva, sem vento e sem nevoeiro. Bem, em boa verdade, só as pedras eram parecidas com as de Arga. E ao longo de uns meros 1,5 km!

O calor fez-se sentir desde o primeiro momento mas, ainda assim, fomos brindados amiúde com uma brisa fresca que voou do mar até ao interior para nos refrescar. Valeu-me também a frescura da melancia nos 4 abastecimentos espalhados ao longo dos 25 km. Sorri quando acreditei ouvir aspersores de rega em pleno "nada". Concluí rapidamente que não eram aspersores, mas sim cigarras, claro. Um cano surgiu do nada, jorrando água límpida e fresca. Não hesitei em molhar o rosto, o pescoço e o buff. Se aquela água contivesse algum elemento indesejável o mais provável é que se manifestasse apenas no dia seguinte. Diz quem sabe.

Embora de altimetria bastante moderada, algumas das subiditas tiraram-me o fôlego e as forças. "Vai treinar, Susana!", ordenava eu, para dentro. Algumas falhas de marcação no percurso mas também algumas distrações da minha parte fizeram-me dar umas voltinhas extra e obrigaram a algumas paragens. Mas para quem nunca tem muita pressa estes são detalhes sem grande importância.

A meta lá estava e por lá encontrei muitas caras do costume que soube bem rever. As caras de Lisboa e não só, que aproveitaram o facto de estarem a banhos no Algarve para conhecer também o outro lado - o do sem barulho e sem néon a piscar.


terça-feira, 5 de agosto de 2014

Era uma vez, no Século XXI, em Óbidos


(foto de Bernardete Morita)

Numa vila pequenina, de seu nome Óbidos, um lindo castelo se ergue sobre um monte, outrora à beira mar. Já na pré-história este castelo despertara o interesse dos povos invasores da Península Ibérica, dada a sua proximidade à costa atlântica, tendo sido ocupado por Lusitanos, Romanos, Visigodos e Muçulmanos.

Ao segundo dia do mês agosto do ano de 2014, o Castelo de Óbidos foi palco de nova batalha e registou um importante marco na sua história: a reconquista por centenas de… corredores! Uns batalharam 27 km, outros 52 km, mas todos eles, do primeiro ao último a conquistar as muralhas, saíram vencedores.

Dentro de muralhas

Decorria o Mercado Medieval. Meninas, pequeninas e grandes, com os cabelos ornamentados com coroas de flores, passeavam-se exibindo os lindos vestidos da época. Os homens, com o seu ar rude, falavam alto, fazendo justiça pelas próprias mãos ou com recurso a um dos carinhosos instrumentos de tortura medieval. Confesso que me teria dado jeito, depois dos 52 km, aquele simpático “estica o esqueleto”, puxando ambos os braços e pernas. Mas, felizmente, as “tenazes” foram outras.

Pelas ruas, cheirinhos agradáveis de iguarias diversas a arder nas brasas faziam as alegrias dos mais famintos (e barrigudos, também).

Tudo decorria “medievalmente” quando, de repente, centenas de pessoas, dotadas de costumes algo estranhos, invadem a vila. Vestimentas coloridas (e curtas, deixando as camponesas a murmurar sobre o escândalo que seus olhos observavam), com nomes estranhos – Salomon, Asics, Kalenji e coisas que tais, nunca antes vistas, juntaram-se e apimentaram o reboliço que já se vivia.

Partida, largada e fugida, na Porta da Vila!

E houve de tudo naquela “batalha” travada pela gente colorida.
Houve tudo menos canhões, espadas ou instrumentos de tortura medievais.
Houve terra, cascalho, água e lama. Houve areia. Compacta e movediça. Houve a rugosidade das pedrinhas e a macieza da caruma de pinheiro. Houve subidinhas, descidinhas e estradões. Houve arribas junto ao mar e houve caminhos junto à lagoa. Houve silêncio e houve música dos anos 80, oriunda de uma tal Festa de Branco, na Foz do Arelho. Também houve o "zzzzzz" irritante das melgas e as marcas que me deixaram. Houve calor e houve chuvinha a bater no rosto, refrescando o corpo e despertando os sentidos, deixando os aromas mais apurados. Da terra, da vegetação e de várias flores de cheiro que fui tentando adivinhar pelo percurso. Houve fome e houve também "matar a fome", com os repastos que nos foram sendo oferecidos para retemperar energias - o melão ressuscitou-me três vezes.

Houve o escuro da noite. Gosto da noite. Gosto de correr e caminhar de noite. Acompanhada. "Mas... não se vê nada", muitos dirão. Estão enganados. Veem-se coisas "que eu sei lá". Até se veem coisas que não existem! Mas houve também para mim, para nós, o amanhecer. Recordo-me de um momento em particular, quando o Rui seguia uns metros à frente, numa ligeira subida num estradão que atravessava um pomar. Via apenas o seu contorno, numa manhã que acordava, com aquela luz azulada que permite a definição de contornos como nenhuma outra. Pena não ter registado o momento.

Por falar em pomar... Houve furtos. Eu não sou de acusar ninguém, mas seguia apenas eu e o Rui e posso confirmar que houve furtos. Não havia mais ninguém e uma árvore ficou menos pesada. Eu asseguro que não colhi peras das árvores, mas comi duas. E agora?! Quem desvendará este caso de polícia bicudo que colocará o presumível culpado numa qualquer forca medieval?

Às 6 da manhã houve o sino da igreja. Quem leu o meu mais recente texto, "A Corrida e as Leis de Murphy", sabe do que falo. O sino da igreja, a meta quase a chegar, mas o quase a tardar. Aqueles dois últimos quilómetros foram dos mais longos da minha vida. Quando avisto as escadas que nos conduzem ao castelo sei que está quase. Já as tinha subido há um ano, na versão mais curta da batalha.

Está aqui alguém?

Chegamos à entrada, o Rui dá-me a passagem e ofereço um "truz truz... bom dia!" aos simpáticos resistentes que aguardam os derradeiros atletas. Antes de qualquer coisa, olho para a direita à procura delas. Das marquesas. Era ali que estavam há um ano e eu sabia que em 2013 a Helena e o Rui Queixada não haviam arredado pé sem que chegassem os últimos atletas. Recebi o meu prémio de finisher, nada comi ou bebi e segui direta para uma massagem a quatro mãos, vigorosa e penosa, mas que sei ter permitido que no dia seguinte acordasse sem grandes mazelas.

Era uma vez…

Os "era uma vez" dos tempos modernos são definitivamente diferentes dos de antigamente. Tive um cavalheiro sempre, e pacientemente, a meu lado. Não o esperei no castelo. Ter-me-iam faltado as tranças "Rapunzel" para as lançar da torre. Em vez disso, percorri o caminho de 52 km em 10 horas e uns minutos mais, com ele, para lá chegar. E que bem que soube!



sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A Corrida e as Leis de Murphy



Há tempos havia-me debruçado sobre este assunto, mas arrumei-o. Hoje voltou a cruzar-se no meu caminho e não consegui ficar-lhe indiferente.
Murphy era corredor. Ninguém me disse. Não li em lado algum.
A única coisa que por aí se diz é que Edward A. Murphy Jr. terá sido um major e engenheiro da Força Aérea Americana na década de 40.
Eu sei mais que isso. Eu garanto que este senhor ocupava os seus tempos livres a correr… e na montanha!

Senão, vejamos…

Um atalho é sempre a distância mais longa entre dois pontos.
A meta está ali. Bem perto. À direita. Até ouvimos os sinos da igreja da vila a tocar. Ouvimos também os aplausos. No entanto, é certo que alguém da organização responsável pelo desenho do percurso nos vai colocar a "atalhar" pelo caminho mais improvável, com pelo menos mais 5 km, antes de lá chegarmos.

Tudo leva mais tempo do que todo o tempo que tens disponível.
Sem dúvida. Eu sei disso melhor que ninguém. Faço contas à vida, ou melhor, ao tempo, quando vou para a montanha. É certo que os 10 min/km para percorrer o percurso de rio na Serra da Freita são um absoluto exagero quando os defino em casa. 10 min/km é um verdadeiro absurdo. No local do crime a progressão será, na melhor das hipóteses, a 15 min/km.

Acontecimentos infelizes ocorrem sempre em série.
É certo que num mesmo dia, numa mesma prova, deixemos cair o telemóvel ao rio porque tirávamos uma selfie. De seguida percamos parte da sola da sapatilha porque uma raíz estava no local errado, à hora errada. Está um calor insuportável e ficaremos sem água no camelback. E assim sucessivamente. Em série.

Em qualquer fórmula, as constantes (especialmente as mencionadas nos manuais de engenharia) deverão ser consideradas variáveis.
Mas há dúvidas? Ultra Trail com 50 km. Pois sim. No mínimo serão 55. Trail com 25 km. Claro. Serão no mínimo 28 para aqueles que tiverem a sorte de não perder de vista uma fita de marcação semi-escondida. Não há dúvida quanto ao rigor e precisão científicas dos GPS utilizados pelas organizações de provas em montanha!

Encontrarás sempre aquilo que não procuras.
Vais encontrar lixo na floresta. É triste, mas é verdade. Vais encontrar invólucros de barras de cereais, embalagens de gel, lenços e coisas que tais. Mas a fita que te indica o caminho certo… essa já terá sido removida!

Se te estás a sentir bem, não te preocupes. Isso passa.
Corres a bom ritmo, estás confiante. O piso é técnico mas estás a voar sobre as pedras. Escorregas mas consegues habilmente vencer uma queda no chão. És um super-atleta. Tem calma. Isso passa. Ainda faltam 41 km e 3500 D+ até cruzares a meta.

A Natureza está sempre a favor da falha.
A pedra inanimada que se atravessa no teu caminho terá sempre o movimento suficiente para saltar e te bater na canela. A rocha que atravessas será sempre mais escorregadia do que prevês e acabarás com o nariz esmurrado. A raíz da árvore que surge por debaixo das folhitas terá sempre mais 10 cm do que esperavas. A altura da água do rio será sempre maior do que o que previas e o banho será inevitável. A Natureza adora pregar partidas.

Um morro nunca desce.
Não importa para onde vais. Será sempre morro acima e contra o vento. Ou se calhar o morro até desce, mas depressa concluirás que afinal foi mais fácil subi-lo do que descê-lo, no momento em que os teus joelhos começarem a pedir misericórida e descanso.

O dia de hoje foi realmente necessário?
Quantas vezes te questionas “o que faço aqui?” ou “porque não fui para a praia?”. Quantas e quantas vezes, enquanto corres na montanha, resmungas e proferes palavras que não ensinarias às crianças? O problema… o problema é que quando cruzas a meta, uma estranha sensação de esvaziamento de más sensações e dores acontece, sorris e pensas na próxima!


Bom descanso, boas corridas, boas férias!


terça-feira, 15 de julho de 2014

Da Ponte de Porto Antigo até Cinfães



A foto de domingo era mesmo do Douro. Está um pouco torta porque também eu o estava depois de dormir pouco mais de 4 horas no carro.

Acho que ando a fazer as coisas certas no tempo errado. Ou as coisas erradas no tempo certo. Seja como for, alguma coisa está errada. Mas há qualquer coisa certa também.


A aventura chamou-se Trail do Douro e Paiva. Anunciaram 30 km, terminámos com 34. O problema... o problema é que era preciso subir muito para se chegar à meta. Muito mesmo.


Algures depois do segundo abastecimento, seguia num ritmo verdadeiramente estonteante (7 min/km, por aí) e pensei… “hoje vai correr bem”. Cem metros adiante cruzo-me com um velhote, coxo, de muletas. “A menina a correr assim não chega lá nem amanhã”, disse-me. Repito. O senhor era velho, coxo, usava muletas e teve a ousadia de sugerir que eu corria muito devagar.


Fiz cara feia. Mentirinha. Fiz um lindo sorriso. Um sorriso que ganharia o prémio de sorriso menos genuíno do ano. E ainda só vamos em julho.Uma vezes gostei, outras vezes gostei muito (meteu e meti muita água), outras vezes não gostei (e proferi orgulhosamente palavras feias).


Corri, caminhei. Fui subindo nas subidas. Fui descendo nas descidas. Comi melancia. Bebi coca-cola. Perfeito.Na meta, em Cinfães, muitos aplausos e palavras de incentivo. De quem acabou antes. De quem fez a prova maior. De quem fez a minha prova. De quem nem sequer correu e acha que somos uns verdadeiros heróis.Às vezes acredito que sim. Que são. Que somos.


Não precisamos da corrida para o sermos. Precisamos de fazer qualquer coisa que custe um pedacinho e no fim conquistar a medalha do sentimento de superação.


Vitória, vitória (acabou-se a história)!

quarta-feira, 2 de julho de 2014

A Montanha e as Injeções de Confiança


(foto de Miguel Catarino)

Há momentos nas nossas vidas em que precisamos de injeções de confiança.
Atenção. Não falo de massagens ao ego provindas de outrém. Falo de injeções de confiança resultado de atos nossos.

O que são injeções de confiança, perguntarão? Podem ser tantas e de natureza tão variada.
Uma filha sussurar-nos que somos a melhor mãe do mundo. Ou um filho responder rapidamente com "sim" a todas as questões triviais que colocamos ao telefone, mas quando perguntamos "tens saudades minhas", responde "muitas". Faz-nos acreditar que, no que respeita à educação dos filhos, alguma coisa devemos estar a fazer bem.
Pode ser um pai a dizer "gosto muito de ti, ó piruças". Faz-nos acreditar que mesmo fazendo asneiras, somos a filha que deseja.
Pode ser alguém que amamos dizer-nos que quer ficar connosco para sempre. Faz-nos acreditar que valeu a pena preparar aquela salada com 15 ingredientes, cuja combinação foi cuidadosamente estudada.
E depois...
Pode ser a montanha. A montanha tem uma capacidade imensurável de nos injetar confiança, que só apetece colar pensos rápidos para que não saia pelos poros. Chegar a "certas e determinadas" metas na montanha faz-nos acreditar que temos forças para fazer parar a Terra de girar em torno de si própria e em torno do Sol. Mesmo que acreditemos apenas por uns dias, já terá valido a pena.

Pouco ou nada me tem faltado. Sou uma afortunada.
Mas, desde a experiência na Madeira, tenho vindo a somar "fracassos" - perdi-me no Paleozóico, abandonei o Marão, abandonei a Estrela, enfim... confesso que no sábado estava a precisar de uma injeção daquelas que só uma meta a 70 km da partida e a Serra da Freita podem dar.

No fim-de-semana anterior ao UTSF (Ultra Trail da Serra da Freita, para quem me lê mas pouco quer saber de corridas) fui até ao local onde se desenvolve a prova. Tinha pedido ao Rui para percorrermos um pouco do traçado que a constitui, ficando claro que teria que visitar a Frecha da Mizarela. Sabia que muito dificilmente teria capacidade para lá chegar dentro do tempo estabelecido e, se porventura um milagre sucedesse e lá chegasse, o Sol já se teria deitado e nada veria.
Assim foi. Percorremos aquilo que é a Corrida da Freita mais uns pózinhos. E adorei. Quando chegámos ao Merujal, o Rui indicou-me onde era a meta, junto à casinha de pedra. Nada lhe disse mas cá dentro pensei "e se... e  se correr bem? que bom seria!". A tal injeção de confiança.

Porque fui então ao Ultra Trail da Serra da Freita?
Porque queria experimentar as passagens no rio. Queria chegar a Drave. Queria saber se todas as pedras eram como as que vi no PR7, em tons de prata e dourado, num padrão que daria o melhor vestido. Queria ver montes e vales entrelaçados, fazendo-me acreditar que na serra também há penteados e que naquele dia a Freita havia escolhido usar uma trança. Queria molhar os pés, as pernas e o buff no Paivô. Queria, ó se queria, ver os Três Pinheiros. A partir daí... a partir daí logo se veria.

Depois dos 30 km sabia que só teria mais 10 para percorrer. Nunca chegaria dentro do tempo de controlo. Mas era impensável deixar-me ficar por ali. Eu queria a "chapa" ao lado dos Três Pinheiros. Segui com a Carla e a Anabela, esta última que, num ato altruísta, desistiu de seguir em frente, ajudando quem precisava. Rapidamente se juntaram os "rapazes-vassoura", a retirar as fitas de marcação atrás de nós e, um pouco adiante, o Miguel e a Lia, que andavam a certificar-se que ninguém ficava sem dentes naquele troço do rio.

(foto de Miguel Catarino)

Foram 10 divertidíssimos quilómetros, interrompidos por um banho, a meu pedido, antes da subida aos Três Pinheiros, pelo Trilho dos Aztecas. Não ousaram recusar a minha proposta, pois o meu rosto estava a precisar das cores que só a água lhe consegue devolver. Com novas cores ficou também ao entrar e percorrer o maravilhoso Trilho dos Incas, que me conduziu até ao final. Ao meu final.

De pé aplaudo todos aqueles que cruzaram a meta do UTSF. Já nos balneários, a querida Júlia Conceição dizia-me que os primeiros 40 km do UTSF eram um docinho. Sorri. Sorri e pensei como tinha ousado pensar por segundos, no Merujal, ao lado da casa de pedra, "e se?".

Há que ter humildade. Sabem bem as palavras de força e incentivo. Mas é importante reconhecermos que na vida há que batalhar muito para se alcançarem algumas metas. O UTSF deve ser isso mesmo. Uma batalha para grandes guerreiros!

Vou voltar à Serra da Freita e é certo que não vou esperar por 2015. Voltarei sem fitas de marcação, seguirei os PR traçados no mapa que guardo comigo e terei o Rui a guiar-me "besta" acima. Certo, Rui?

Quanto à injeção de confiança da montanha... essa terá que aguardar um pouquinho mais. Para já, vou desfrutando dela, como sei, como posso, como me dá prazer.





segunda-feira, 26 de maio de 2014

Lindo Faial, de Costa a Costa

(foto de Andreia Fontes)

Percorrer ilhas de Costa a Costa parece começar a fazer parte da minha vida. Felizmente o Faial é mais estreito do que a Madeira, poupando-me assim as alucinações que vivi há pouco mais de um mês naquela que designam de pérola do Atlântico.

Isto põe-me a pensar e a acreditar que a ilha do Faial seja a perolazinha do Atlântico, pelo simples facto de ser mais pequenita. Beleza não lhe falta. Só faltaram as hortenses "aos molhos". Infelizmente não é tempo delas.

Recuando 31 anos

As minhas amigas de sempre chamam-se Sofia. Estratégia minha. Desde cedo me rodeei de “sabedoria”. Conheci uma das Sofias com 7 anos, enquanto rebolávamos no relvado anexo ao Clube de Oficiais da Base Aérea nº 4, nas Lajes. Estávamos em setembro e ambas tínhamos acabado de aterrar a bordo de um Hercules C130. Creio que o C130 abanou demasiado, porque nem o meu pai nem o pai da Sofia pilotaram o dito aparelho. Entretinham-se antes com outros mais pequenos, mais rápidos, mais… acrobáticos!

Para quem não sabe, as Lajes ficam na ilha Terceira. A “terceira” ilha, de um conjunto de 9, que tive a sorte e oportunidade de conhecer nos dois anos que vivi e cresci nos Açores. Tenho pena de não poder oferecer à Inês e ao Diogo a liberdade de que usufruímos naquele canteirinho no meio do mar plantado. Um canteiro muito verde, sem quaisquer perigos, pelo que brincávamos livremente após a escola, até o sol se pôr, ansiando pela próxima visita ao “BX”, o famoso armazém na parte americana da base, para adquirir o modelo mais recente da Barbie, boneca que ainda não havia sequer sido descoberta pelas meninas do continente.

Fui uma criança cheia de sorte. E a Sofia também. E serve a presente introdução saudosista para dizer que 7 das 9 ilhas açorianas e suas gentes estiveram presentes enquanto fui crescendo e, por isso, nutro um carinho muito especial por elas. Continuam por conhecer as Flores e o Corvo. Lá chegarei.

Bom voltar ao Faial

Terei visitado o Faial pela última vez em 2007, por motivos profissionais. Os aeroportos fazem parte da minha vida e o do Faial não é exceção.

Soube bem voltar agora, movida pela corrida. Foram os trilhos que me fizeram regressar. E sabe muito bem nestes moldes, com um conjunto de várias dezenas de pessoas que partiram de Porto, Lisboa e região centro, para sujar os pés, a uns milhares de quilómetros do continente.

Num grupo tão grande, reina naturalmente a diversidade. Mas é impossível não nos sentirmos bem junto de pessoas que sabemos partilharem deste gosto pela montanha e que, mais do que ninguém, entendem a razão de ser de sorrirmos desmesuradamente, quando cortamos a meta, 46 km depois de termos partido, há 8h56m atrás.

A 500 metros da meta, ouvindo o meu nome e o do Rui, acabaram-se as dores e o cansaço, e só me lembro de soltar as pernas sobre aquelas cinzas fofas, ver o mar e uma mancha de gente ao fundo, a aplaudir-nos. Não faltaram as felicitações dos amigos e também do primeiro atleta a cortar a meta, 4h30 antes de nós. Grande Armando Teixeira. Belíssimo gesto para "gente da montanha" pequenina (literal e metaforicamente falando), como eu. 

46 km, "de A a Z"

Pusemos os pés a mexer na Ribeirinha, descendo até ao mar. Escusado será dizer que me apeteceu mergulhar naquelas águas. Às 9 da manhã o dia já prometia aquecer.

O Rui já me havia "briefado" e a estratégia seria seguir com calma até ao km 21, para depois tentar imprimir mais velocidade na segunda parte do percurso.

Cedo percebi que não conseguiria seguir senão com muita calma, claro! Depois de rolarmos um pedacinho, surgem diante de nós várias dezenas de degraus, aproveitando alguns socalcos, recentemente recuperados pela organização propositadamente para esta prova. Iríamos percorrer cerca de 22 km em trilhos até à Caldeira. Pela frente teríamos diversos pisos, ora em estradão, ora em pedritas, mas quase sempre subindo, subindo e subindo. Recordo particularmente o estradão aos ziguezagues, que me obrigou a "desenhar com os pés" a primeira letra do meu nome, umas várias dezenas de vezes.

Como escreveu a Anna Frost, o Azores Trail Run foi uma verdadeira experiência 360º. É de facto uma designação muito bem conseguida, esta da Frosty. Entre uma diversidade de pisos e paisagens, foram-nos sendo oferecidos cenários idílicos, do tipo "brochura férias de sonho", geralmente carregados de Photoshop. Aqui sabemos que vemos as coisas como são: o verde como só o conheço nas ilhas açorianas, um azul que só reconheço no mar que as rodeia e... vacas como não vejo em nenhumas outras paragens... e pastagens! Até as vacas são mais bonitas nos Açores. Mérito do prado, seguramente.

Na Caldeira inicia o Trilho dos 10 Vulcões, o qual percorre os 10 vulcões principais existentes no alinhamento fissural do Capelo. Pensava que conseguiria correr muito ao longo da Caldeira. A irregularidade do solo e o cansaço já acumulado nas pernas derivado das muitas subidas não me permitiu correr como desejava, pelo que lá fui seguindo como podia, tentando apanhar a minha lebre. Por vezes a lebre parava e ficava a contemplar tudo o que nos rodeava. Eu lá chegava, uns minutos depois, libertando para o ar longos suspiros.

Passamos por um casal sentado junto a umas pedras que serviam de miradouro. E por ali ficaram, porque os voltámos a ver um par de horas depois, quando o percurso voltou a passar perto daquele local. A Caldeira isso pede. Horas a contemplá-la. Horas a ver o verdadeiro "jardim botânico" que se desenvolve no seu interior. Creio que gostaria de descer lá abaixo um dia. E colocar-me sobre o exato ponto por onde começou a "festa explosiva", há muitos milhares de anos atrás. 10 mil, dizem. Poderia ter aprendido muito mais com o "wikipinho", mas o cansaço que sentia era tal, que a certa altura exclamei "quero lá saber da cn43$#%o0i5 dos 10 vulcões". Quem perdeu fui eu.

Tínhamos chegado às antenas, logo agora só poderíamos descer. Por alguns momentos somos brindados com nevoeiro. Eu que lá vivi, sei bem como os Açores são pródigos em oferecer as 4 estações do ano num único dia. A organização esteve tão irrepreensível que nem na meteorologia desiludiu. Sol e visibilidade extraordinária em quase todo o percurso, permitindo à vista alcançar o Pico e São Jorge.

Os voluntários recebem-nos em todos os postos de abastecimento como heróis, mas os verdadeiros heróis já aterraram há muito na meta. Estamos na "reta" final e não recuso a meia bifana que me é oferecida. Lá seguimos, e um pouco mais tarde vejo uma placa a indicar que faltam 5 km para os Capelinhos. Sei bem que 5 km podem demorar muito tempo a percorrer.

Apenas lamento a fadiga que já sentia na altura, porque foram os 5 km mais brilhantes do percurso. Cada qual se sensibiliza com o que lhe toca e eu comovi-me inúmeras vezes ao longo daqueles 5.000 derradeiros metros. De tudo um pouco. Trilhos onduladinhos a descer recheados de pedra-pomes. Escadas a subir o Cabeço Verde que me deixaram quase sem respiração. O verde continua a perserguir-nos. O vassoura Otávio acompanha duas brilhantes atletas uns metros atrás, que se estreiam na distância. O Rui segue na frente. Corre e volta atrás, como fez ao longo de toda a prova. Gostava de saber quantos quilómetros marcou o seu Garmin.

Chegamos à estrada. Receio que nos ponham a descer em alcatrão até lá baixo, à meta. Não. Pela frente temos 500 metros de cinzas. Cinzas fofas. Amortecem o impacto. Não receio cair sobre elas. E solto a pequenina Frosty que há em mim. Os 500 metros de corrida mais divertidos e saborosos que alguma vez vivi.

Não preciso repetir como chegámos à meta. Já o escrevi acima. Terminei feliz, com um sorriso de "Costa a Costa". E creio que o Rui também. Mesmo depois de várias horas a rebocar-me e a lidar com o meu mau feitio. Sou escorpião. É inevitável.

Até já, Faial...

Sim. Até já. Porque vou seguramente voltar. Para correr. Cheguei antes do pôr-do-sol, é certo, mas o Garmin morreu às 8 horas. Vou voltar também para petiscar no café delicioso junto à Praia do Norte. Para conhecer o que ficou por conhecer. Para rever o que tanto gostei.

Três dias depois, reconheço que mais importante que ter finalmente conhecido a Anna Frost, terá sido o trabalho herculano desta organização, muito particularmente do Mário, em garantir a sua participação no Faial Costa a Costa.

A presença da Anna Frost e a divulgação que esta atleta internacional fez desta ilha e deste Arquipélago colocaram seguramente os Açores nas bocas do mundo e mais além. Bem merecem! Aplausos, muitos, para todos os que montaram o Azores Tral Run!


quarta-feira, 7 de maio de 2014

Até já, lindo Marão!


Sei que sonhava chegar ao Km 25 quando tirei esta foto.
Estava calor e a minha boca pedia mais que água. Queria coca-cola.
Olhei para este moinho de vento - gosto mais desta designação do que a de eólica - e pensei... "caramba, hoje vocês estão mais lentos do que eu!".
E estavam. Mal mexiam. Eu ainda tentava correr um pedacinho quando o terreno aplanava ou descia.

Um pouco adiante deste local liguei ao meu pai.
Costumo fazê-lo para dizer como estão a correr as coisas e tentar tranquilizá-lo. Anunciei que estava exausta e ficaria pelo abastecimento seguinte, que acabou por surgir ao Km 29.
"Olha os teus filhos, Susana!", respondeu ele, sabendo que desta forma me pede subtilmente para ter algum tino na cabeça.
O meu pai não tem que se preocupar porque eu já sei que vou chegar a velhinha.
Por mais disparates que faça, os astros já o disseram. Vou ser uma velhinha rija e cheia de saúde.

Ainda falava com o meu pai quando ouvi alguém atrás de mim. Volto-me e "perco o pio". A uma velocidade estonteante passava o Óscar Perez, acompanhando do cachorro que por tantos kms correu a seu lado. 
Só me lembro de dizer "valente" e "parabéns". 
O meu pai perguntou-me do lado de lá o que se passava. "Ó pai, acaba de passar por mim o primeiro atleta dos 125 km (seriam 140, afinal)", respondi eu.

No Marão não consegui ir além do Km 29. Há dias assim.
O Marão é lindo e, tal como já disse dezenas de vezes nos últimos dias, lá voltarei.
O Óscar Perez, por seu lado, foi bem mais além, chegou ao fim e escreveu isto.

A leitura destas palavras fez-me arrepiar e querer continuar.
Continuar por aí, monte fora, lenta, menos lenta, como for. Sabendo que atrás de mim apenas correm os vassouras. Não faz mal.
Ao meu estilo, tenho em mim o "espírito da montanha".
É coisa pequenina, eu sei, mas já cá mora.

A todos os que lá estiveram, chegaram ao fim ou foram o mais longe que puderam... parabéns.

Em jeito de nota final, e antes ainda das palavras sábias do Óscar Perez, quero que saibam que o cachorro regressou comigo à meta de carro. Todos acreditámos que ele seguiria ao lado do Óscar. A simpática equipa de voluntários ao Km 29 nutriu-o mas não permitiu que seguisse. E agiu muito bem. 

(...) Es entonces, creo, cuando nos volvemos jueces de galaxias sin leyes y colocamos en la balanza todo aquello que nos supera y nos aleja en la mayoría de casos del famoso concepto "Finisher". 
Y en esas galaxias lejanas nos volvemos más marcianos que los marcianos y, nos olvidamos de paisajes, de pueblos, de senderos, de luces y sombras milenarias, y de un largo etcétera... tan amplio como la imaginación de quien trazo el recorrido, tan amplio y largo en este caso, como el mismo río Duero.

Despegamos hacia galaxias incógnitas y nos olvidamos de la Tierra y dejamos de pisar en ella.
Nos olvidamos donde estamos, de la montaña y lo que representamos en ese atmósfera. Todo por un "Concepto Finisher" que nos hizo olvidar si verdaderamente deberiamos estar ahí.

Seguramente, como en otros casos, la organización cambiará y rectificará muchos detalles y conceptos para la siguiente edición.
Pondrá agua y comida donde faltó y contabilizará bien los kilómetros. Pero el espíritu de la montaña es algo que no se agota y mucho menos se contabiliza y, quien no pueda entender porque corremos campo a través cuando a escasos metros se dibuja una magnífica pista para hacerlo, no conseguirá hacerlo por muchos viajes siderales al planeta "Finisher" haya realizado.

Por eso, deseo y confio en los cambios. Pero NO toquéis, NO cambiéis por favor la actitud y aptitud de tod@s los que hicieron posible correr por y para la montaña.
Por eso, doy las Gracias a tod@s que directamente o indirectamente hicieron posible el UT MARÃO con ese concepto. Acercarnos a la montaña y olvidarnos de lo contrario.

El agua la encontraréis en muchos otros sitios, pero lo anterior, cada vez escasea más.


Óscar Perez, vencedor do Ultra Trail do Marão, em Maio de 2014.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Uma noite, um dia e uma noite mais depois... cheguei a Machico!


Contrariamente ao que havia previsto, não tomei notas no meu caderninho ao longo da minha viagem de 85 km pelos montes e vales da ilha da Madeira. Faltou-me destreza em determinados momentos para andar. Imagino se tentasse desenhar duas palavras com o bico da caneta!

Fui a Susana feliz e a Susana triste. A Susana energizada e a Susana derreada. Fui a Susana em modo “acredito” e a Susana em modo “não vai ser possível”. Fui também a Susana a correr e a Susana a deambular. Fui a Susana “quero” para, minutos depois, ser a Susana “não quero”. Fui a Susana lúcida e a Susana alucinada. Fui a Susana sem medo e fui a Susana cheia dele. Fui de tudo um pouco ao longo das 25h42m que constituíram esta aventura.

Muitas vezes me dizem que gostam de ler os meus relatos porque, com eles, consigo transportar os leitores até às aventuras que vivo. Pois bem… deixem-me desde já que vos diga que, desta vez, por melhor que seja a seleção das palavras, estas dificilmente traduzirão o que senti. Não conseguirão entender o que eu vivi. Nem eu conseguirei perceber o que viveram os atletas dos 115 km. Se querem saber como é, visitem a Madeira e o MIUT no ano que vem!

Uma “pequena” amostra do que nos espera

Aos 500 metros de prova já pensava ser impossível terminar. Dei comigo a subir de costas a parede que nos foi oferecida imediatamente a seguir à partida em Porto Moniz. Os gémeos pareciam pegar fogo! Depois de muito subir, entrámos finalmente num trilho que era chão. Muitas vezes ouvi eu este termo na Madeira. Para os locais, “chão” é sinónimo de plano. Mas a sensação que tenho é que pouco “chão” pisei!

A descida até ao km 5 deixou-me novamente entusiasmada e emocionei-me com os fortes aplausos e palavras de ânimo que recebemos por parte dos locais quando chegámos ao vale. “Olha esta pequenina”, diz uma senhora. “Esta pequenina já tem idade para ter juízo”, pensei eu, sorrindo. O sorriso esvai-se rapidamente. Começa a mais longa subida de todo o percurso dos 85 km. Mais coisa, menos coisa, e até ao km 27, nada mais teremos do que subidas, subidinhas, subidonas, escadas, escadinhas e escadões. É também neste momento que começo a ver a Mariana a afastar-se, a bom ritmo, e inicio assim a minha jornada a solo.

By night…

O CP1 em Fanal ao km 13 faz-me recuar no tempo. A noite, as luzes, a tenda… tudo isto me remete para Portalegre e para o UTSM há um ano. Boas recordações! Misturam-se os atletas das duas provas, recarrego energias e sigo caminho.

Seguem-se muitas horas de noite escura, sem estrelas e muito nevoeiro. Temperatura amena. Silêncio absoluto. De quando em vez alguém passa por mim. Vejo uma luz vermelha traseira a piscar. Vejo ao fundo um frontal quando me volto para trás. Gosto disto. Adoro isto. E não… não tenho medo.

O Paulo Pires ultrapassa-me. Trocamos algumas palavras. E assim vai acontecendo ao longo da prova. Os amigos dos 115 km, que sobem e descem mais do que eu que faço os 85, sempre retomam ao trilho que sigo e dão-me “palmadinhas nas costas”.

O João Mota cruzou-se comigo 4 vezes. O Didier e o Ricardo Belchior por duas vezes se cruzaram no meu caminho. Da primeira vez acharam que não chegaria ao fim, disseram-me depois. Na segunda ficaram surpreendidos por me ver correr como se estivesse na Corrida do Sporting, num longo estradão a cerca de 15 km da meta. Escuso de esclarecer que isto nada tem de grandioso, pois todos sabem que corro a 6'/km em estrada. O Ricardo Diez, Paulo Picão e Pedro Lizardo apanharam-me num trilho em single track, enquanto me debatia com o sono que quase me atirava para um qualquer arbusto. Como me sabia bem ver caras amigas, sorrisos conhecidos e palavras de incentivo!

Por diversas vezes me lembrei da crónica do José Guimarães, que correu os 115 km do MIUT em 2013, acompanhado do Miguel Pereira. Fizeram a prova juntos. Recordo-me do Zé fazer referência a um provérbio japonês que nos diz “ao lado do teu amigo, nenhum caminho será longo”. Não tive a companhia física desse amigo de que nos fala o provérbio japonês. Tive-a à distância de várias dezenas de mensagens escritas e palavras trocadas. "Onde estás, Susana?", perguntava-me. “Vais agora subir X metros”. “O declive é de Y%, Susana” . “Já fizeste a parte mais difícil”. “Força!”. “Tenho orgulho em ti!”. Rui, és esse amigo do provérbio e muito mais, e sabes lá como foste importante para que conseguisse caminhar e correr até ao fim!

O “Olá!” para a câmara e a subida ao Pico Ruivo

Depois de sair da Encumeada, iniciava a subida ao Pico Ruivo. Passo por um cameraman que pensava pertencer à organização. Quase sem fôlego, cumprimento-o com um “olá” arrastado, como sempre faço quando vejo alguém a fotografar, a filmar, a trabalhar nos abastecimentos e fora deles. Mais tarde viria a perceber que afinal se tratava de uma câmara da RTP1, quando, falando com os meus pais algures a meio do percurso para os tranquilizar, me disseram que me tinham visto na TV. Ficaram seguramente mais tranquilos depois de terem visto a esclarecedora reportagem!

A subida ao Pico Ruivo remeteu-me novamente para o UTSM. Estava a revisitar a subida a Marvão com a agravante de a subir não 4, mas sim 435 vezes! Há horas que tinha saído da Encumeada. 10 km apenas separavam os dois pontos. Estava exausta e as escadas não me davam tréguas. As escadas tortuosas, inclinadas, bicudas, redondas, baixas, altas. Escadas de toda a forma! As pedras e o cascalho. Tudo tornava a progressão lenta e demasiado difícil. Quando atingi finalmente o Pico Ruivo, o ponto mais alto da ilha, estava decidida a abandonar a prova. 48 km tinham sido percorridos. “Vou ficar por aqui”, disse, vendo o Luís Trindade e o Nelson Diogo chegarem. “Porquê?”, respondeu o Luís. “Estou exausta. Tenho dores.”, respondo de novo. “E eu não tenho dores, queres ver?”, questionou indignado. Aguardei 5 minutos e senti-me envergonhada. Afinal… o Luís e o Nelson acabavam de chegar ao Pico Ruivo depois de subir desde o Curral das Freiras. Eu havia subido dos 1.002 metros aos 1.748 metros. Os atletas dos 115 km haviam descido dos 1.002 aos 648 m, para depois voltarem a subir aos 1.748 metros. “Estás com dores, Susana?”, pensei para comigo. “Tem mas é juízo e mete-te a caminho”. E segui caminho.

Como é linda a Madeira!

Abençoado Luís pelo seu pragmatismo e assertividade, porque percorri um dos mais fantásticos caminhos de todo o percurso - o troço que separava o Pico Ruivo do Pico do Areeiro. Estou mergulhada naquele que é o maciço montanhoso central da Madeira. Não sabia que esta Madeira existia. Desconhecia por completo e é a terceira vez que visito a ilha. Vales profundos, declives escarpados. Escadas de todas as formas e feitios onde mal cabe o meu pé de tamanho 35. Túneis. “Susana, olha para a frente, sempre em frente”, pensei. Luís Sommer Ribeiro, lembrei-me de ti e das tuas vertigens. Eu, que não as tenho, arrepiei e senti as pernas tremer. Mas quanta beleza. Quanta grandeza. E é nosso!

Seguia tranquilamente, apreciando tudo o que me rodeava. Tinha saído do Pico Ruivo com a certeza de que a minha prova terminaria no posto de controlo seguinte, no Pico do Areeiro. Era impossível cumprir com o tempo limite das 16 horas. Tinha 7 km por fazer e pouco mais de 1 hora e meia para os completar. Quando chego já perto das 17 horas ao Pico do Areeiro, passo o chip no controle e anuncio que venho já fora do tempo. “Ainda nada nos disseram no sentido de barrar os atletas, pelo que pode continuar”, respondeu uma menina da organização. Sou envolvida por um misto de angústia e alívio e decido continuar. Só faltam 30 km. Os mais fáceis, diziam. O que tenho como certo é que os 30 km que se seguiram foram uma das mais fantásticas experiências da minha vida.

Alucinando…

Começava a cair a noite. A minha segunda noite em prova. Estou acordada desde as 9 da manhã de 6.ª feira. 34 horas, portanto. O que podemos esperar da nossa cabeça nestas condições? Asneiras, claro!

Nunca fumei. Tirando 2 ou 3 cigarros para mostrar que era crescida, nunca fumei coisa alguma. Agora sei que para alucinar não é preciso nenhuma substância alucinogénica. Basta andar há mais de 20 horas sozinha a monte e o sucesso é garantido.

Até chegar à meta ainda tinha que passar por 4 postos de controlo e por uma diversidade imensa de tipologia de percursos e paisagens. Depois do abastecimento em Lamaceiros, aos 66 km, segui mais energizada para aquela que pensava ser a parte mais fácil de toda a prova. A noite começa a cair e consigo cai também o nevoeiro. Ligo o frontal. Não chega. Ligo o segundo frontal e levo-o comigo na mão, preso ao bastão, como se de uma lanterna se tratasse.

Não vejo as fitas de marcação à distância. Só quando estou bem perto delas. Por cima da minha cabeça apenas uma mancha de luz que se dispersa no nevoeiro. Sigo com prudência porque não consigo perceber que caminho tomar com a devida antecipação.

Entro novamente na floresta e deparo-me com árvores que parece que foram pintadas. Os ramos transformam-se em braços. A folhagem desenha caras de bruxas. Vejo crucifixos e assusto-me. No meio dos arbustos vejo olhinhos vermelhos – estes sei que são reais e pertencerão a um qualquer “bichinho”. Oiço coisas. Vejo caras. Estou a alucinar. Estive perto de chegar a uma situação de pânico, creio. O telemóvel dá sinal de mensagem. A Ana Guimarães está do lado de lá. Ligo-lhe e peço que fale comigo, que diga coisas divertidas. E assim vamos nós, primeiro as duas, depois com o Pedro Quina e o Ricardo Arraias, numa verdadeira “conference call”, que me arrastou para fora dali e para longe do filme de terror que cheguei acreditar estar a viver. Horas depois, já depois de ter cruzado a meta, disseram-me que era normal. Contaram-me histórias de alucinações do mais absurdo que há. Nessa altura sorri e acreditei que afinal era só mais uma pessoa saudável no meio de outros loucos saudáveis. Felizmente não tenho que me sentar no divã de um qualquer psiquiatra!

Quando penso que a partir daquele momento só pode melhorar, vejo-me a descer um trilho técnico que me faz estremecer. Quando o termino, cruzo dois elementos da organização que me alertam que agora só tenho que subir “aquilo ali ao fundo”. A meta está do lado de lá.

Sinto que tenho diante de mim o Monte Evereste. Nunca lá estive, mas acredito verdadeiramente que naquela noite o Evereste aterrou na Madeira. Se estrelas houvesse naquela noite, teria tocado nelas. Só me sentia a subir, a subir, e a subir.

O piso e falta de visibilidade atrasam a progressão. Perco o Norte. Começo a ficar irritada pois sinto-me como se estivesse às voltas no monte. Começo a soltar palavras menos dignas de uma menina. Estou só naquele mundo perdido. "Mas onde estão todos?", penso.

Depois de muitas voltas e caça às fitas de marcação, encontro finalmente o marco geodésico. Só nessa altura sossego, pois sei que se precisar de ajuda, ali saberei comunicar onde estou. Ao longe ouve-se música que penso ser a da meta. Uns momentos depois esvai-se de novo. Estou novamente às voltas e não encontro o momento em que inicia a descida. Quando começo finalmente a descer verifico que ainda estou a chegar ao posto de controlo das Fonduras. Depois disso, pedra e mais pedra a fazer lembrar a Serra da Freita onde nunca estive, seguindo-se mais uma levada, até à Portelinha. Junto à levada vi fantasmas. Afinal eram apenas os lençóis que esvoaçavam no estendal de casas próximas. Muitos fantasmas vi eu! Alucinando, claro!

Mais uma descidita. Começa a chover. O vento sopra forte. Estou a 4 km da meta e agora sim, tropeçando e escorregando pelas pedras que se atravessam no meu caminho, acredito que vou chegar ao fim, antes das 26 horas.

Epílogo

Acredito verdadeiramente que depois do que vivi saí muito mais forte para enfrentar todos os outros desafios que a vida me colocará.

E é talvez por isso que procuro a montanha.

Porque me dá prazer. Porque me faz crescer. Porque me ensina a ter prudência, mas também ousadia. Porque é mais eficaz (e maravilhosa) do que todas as formações em sala sobre valorização pessoal, gestão de stress, liderança (de nós próprios) e outras coisas tais, que se possam frequentar. Não há melhor coach do que a montanha.

Entendam este texto como um testemunho verdadeiro. Não se trata de uma auto-biografia de 26 horas em jeito de auto-comiseração. 

Amanhã é 5.ª feira, e partiria de novo pelas 19 horas para o Funchal, tal como aconteceu na semana passada. Estaria novamente com todos os amigos que partilharam destas alegrias e receios pelos trilhos da Madeira. Alinharia de novo na partida e, se assim estivesse destinado, chegaria à meta pela 1h42 de domingo.



segunda-feira, 7 de abril de 2014

Chegar a Machico



Estávamos em abril de 2005 e trazia um feijão de nove semanas na barriga. Um feijão que viria a ser a Inês.


Lembro-me de estar sentada na esplanada de um restaurante junto às piscinas de Porto Moniz. Recordo-me de ter pedido um bife de atum com molho de maracujá. Adoro maracujá.


Mais tarde, em outubro de 2006, voltei à Madeira por motivos profissionais. Depois da reunião de técnicos de ambiente no Aeroporto do Funchal, regressei ao hotel onde estávamos alojados. Tinha um pressentimento e passei na farmácia. Confirmou-se. Estava grávida do meu segundo filho. Nove meses mais tarde nasceria o Diogo.


A Madeira só me tem deixado boas recordações. Sem omitir o delicioso prego no bolo do caco numa praia cheia de calhau, bem perto da Estalagem da Ponta do Sol, onde fiquei alojada da primeira vez que visitei a ilha. 


Lá está. Pôr-do-Sol, Ponta do Sol, Nascer-do-Sol. Se a ciência não o comprovasse, concluiria que gravito efetivamente em torno daquele astro.


Quinta-feira parto para a Madeira. Não vou em trabalho. Não estou grávida. Não sei se vou em turismo. Há quem considere que sim. Pessoalmente tenho conhecido mais do meu país desde que corro do que antes de o fazer. E não creio que conseguisse conhecer o que tenho visto sentada no banco de umas quaisquer quatro rodas.


A única certeza que tenho - se quem decide a vida de todos não mudar de ideias - é que pelas 00 horas de dia 12 de abril estarei junto de várias centenas de atletas em Porto Moniz, sem bife de atum, mas de frontal ligado na cabeça.


Há qualquer coisa de verdadeiramente encantador nas provas que iniciam à noite. O cenário avistado por quem fica cá atrás, como eu, olhando as centenas de luzinhas montanha acima, é de fazer arrepiar o mais insensível ser deste planeta.


Tenho 26 horas para completar 85 km num verdadeiro sobe e desce com 8.000 metros de desnível acumulado.


Sei que, atleticamente falando, estou longe de estar preparada. Conto apenas com a minha teimosia e a vontade de apanhar o avião de regresso a Lisboa, "as scheduled". Tenho mesmo que me... despachar!


Desta vez levo comigo um caderno de apontamentos e uma "bic". Estou certa que vou querer tomar notas pelo caminho. Mais importante do que o track no garmin - que morrerá ao fim de 8 horas a monte - serão todas as outras experiências vividas num pedaço de terra que flutua no Oceano Atlântico.


Vamos lá então descobrir como se chega a Machico!

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Juramento solene de mães perfeitas

Tivesse eu conseguido escrever estas palavras, que me roubaram sorrisos, gargalhadas, lágrimas no canto do olho, suspiros e "caramba, é isto mesmo".

E são todas estas coisas que a Marta Gautier refere, todas estas e mais algumas, que nos fazem questionar se estamos a desempenhar bem o nosso papel, mas também as que resultam nas nossas maiores alegrias.




Juro ter os meus filhos penteados, limpos, bem vestidos, unhas cortadas, vacinas a tempo. Juro brincar com eles, ser uma mãe divertida, não andar em cima deles, ter vida própria. Juro garantir que aprendem e fazem os trabalhos de casa. Juro esclarecer dúvidas, nunca ir buscá-los depois das seis, dar recados na escola, receber recados da escola, fazer os poemas que a escola pede, fazer os fatos de Carnaval biodegradáveis que a escola pede, mandar dinheiro para o planetário, falar com os professores, falar com as educadoras, festejar aniversários no dia com bolos sem creme (como a escola pede), festejar outro aniversário, noutro dia animado e divertido, com convites, balões à entrada, chapelinhos, bolos com Smarties. Juro comprar presentes para colegas aniversariantes, levá-los às festas, esperar duas horas na rua, voltar a buscá-los. Juro saber lidar com as birras, controlar as birras, inscrevê-los num desporto, acompanhá-los ao desporto, ter um cartão para o desporto, vesti-los para o desporto, ver o desporto, tomar conta do bebé durante o desporto, bater palmas ao desporto, pagar o desporto. Juro escrever cartas ao Pai Natal, escrevê-las com canetas coloridas, estrelinhas à volta, mascarar-me de Pai Natal, deixar bolachinhas para alimentar o Pai Natal, de manhã limpar as migalhas deixadas pelo Pai Natal. Juro dar banho todos os dias, pôr creme todos os dias, mudar camas encharcadas, esfregar colchões encharcados, deixá-los ao sol, não gritar com crianças que encharcam camas, acordar às sete da manhã aos Domingos, ter antiderrapante na banheira, lavar dentes, ensinar a lavar dentes, cortar bifes, ensinar a cortar bifes, tirar cotovelos de cima da mesa, atar sapatos, ensinar a atar sapatos, tirar cebola do arroz, ter babetes impermeáveis, ler histórias, fazer vozes, ensinar músicas, ♪ põe o ovo lá no buraquinho ♪, explicar as instruções dos jogos, ir aos baloiços, empurrar os baloiços, ensinar a não ter medo dos baloiços, ♪ raspam, raspam, raspam ♪. Juro comprar trotinetas, bicicletas com rodas, bicicletas sem rodas, ténis com rodinhas, skates, lanternas, Cds do Panda, Barbies executivas, calças rotas. Juro dar semanadas, ensinar a gerir, ser justa, transmitir valores, valorizá-los, promover bons sentimentos, alimentar a criatividade, fazer aerossóis, e mais aerossóis, outra vez aerossol, ter Ventilan, conseguir atestado médico para voltarem à escola, evitar o excesso de televisão e chocolates. Juro não gritar, não lhes bater, não perder a cabeça, ir a sítios giros, estar atenta às companhias, fazer uma alimentação variada, cozer legumes, ensiná-los a gostar de legumes, verificar se puxam o autoclismo, ensinar a limpar o rabo, verificar se o rabo está limpo, ensinar a limpar o pingo, a pôr a tampa para baixo, a assoar. Juro pôr casacos quentes, gorros, limpar ouvidos, ter os brinquedos arrumados, ter os brinquedos por caixas, ter as caixas por temas, ter os temas actualizados, fazê-los cumprimentar as pessoas, garantir que não gritam, que fazem amigos, pô-los no penico, com amor.
Juro fazer bem o meu trabalho, evoluir profissionalmente, ser humilde, almoçar com colegas, rir com colegas, ter espírito de equipa, ser útil, prestável, ter presença, ter uma presença agradável.
Juro ter a casa arrumada a cheirar a limpo, aquecida, moderna, com design, velas de cheiro, centro de mesa, plantas, regar as plantas, ter quadros na parede, ter os quadros direitos na parede. Juro amar a minha casa, aproveitar a minha casa, ter gosto em cozinhar, surpreender, ter pão fresco, regar as plantas. Juro convidar amigos, saber receber, fazer tudo numa hora, quase sem se reparar, aperitivos, Ervas da Província, chão limpo, cantos limpos, sumos, sobremesas, chocolate quente para pôr em cima, cozinha impecável, abrir o vinho uma hora antes, Nespresso. Juro ser leve, despachada, não fazer dramas. Juro ter o frigorífico arrumado, sal e abrilhantador, fruta, iogurtes com pedaços, nunca deixar faltar leite, detergente, maçãs. Juro ter uma boa pessoa lá a trabalhar, que trate bem as crianças, que as lave atrás das orelhas, que passe a ferro num ápice, mal paga, um bom negócio.
Juro ser sexy, gira, estar gira, vestir-me bem, ter um rabo brasileiro, fazer sexo, comprar algemas. Juro ser companheira do meu marido, ser jovem para o meu marido, ser fresca para o meu marido, seduzir o meu marido, pôr batom para o meu marido, estar sempre pronta, botas leopardo, ter aperitivos para o meu marido, ignorar os seus gritos com os miúdos, ver o canal de notícias. Juro dançar, pintar as unhas, ter charme, ser fiel, ter o cabelo sedoso, pele brilhante, dentes brancos, comer saladas, beber água, fumar pouco, só para o estilo, conhecer a forma mais moderna de fazer um rabo-de-cavalo, pôr creme nos cotovelos, ter soutiens sem alças, soutiens com as alças juntas para certos tops, soutiens com alças giras quando é para se verem, calças brancas que não sejam transparentes, camisas transparentes que não sejam ordinárias, saias ordinárias que só pareçam modernas. Juro controlar o humor antes da menstruação, ter classe, viajar, ser uma boa companhia, visitar os meus avós, aprender com eles, levar-lhes os bisnetos, jantar nos meus pais, não me importar que dêem sombrinhas de chocolate ao netos, não me importar que os deixem jantar de prato no colo. Juro ter tempo, não me queixar, ser divertida, boa amiga, conciliadora, ouvir desabafos, desabafar, chorar só quando é preciso. Juro não ser parvinha, embirrenta, ciumenta, mole. Juro ser feliz, ter graça, inovar, sair com amigos, ler, ser culta, esperta, rápida, solidária, bem-disposta, optimista, interessante.
Juro solenemente.

em NÃO HÁ FAMÍLIAS PERFEITAS de Marta Gautier.

sábado, 29 de março de 2014

Daylight Saving Time



Melhor do que a chegada da Primavera, que de resto chegou e já se foi embora, é a chegada do Verão, com a mudança da hora e o designado "Horário de Verão".

Quem sabe o São Pedro nos tenha reservado a passagem direta para a estação mais quentinha do ano. Veremos se assim é nos próximos dias.

Na próxima madrugada, pela 1 hora da manhã, os relógios adiantam uma hora.

Para quem está a dormir representa menos uma hora de sono.

Para quem está acordado representa menos uma hora de diversão.

Para quem está a trabalhar representa menos uma hora a fazê-lo. Sorte a dos que forem recompensados de igual forma.

Perdemos uma hora de vida, que recuperaremos daqui a uns meses.

Ganhamos luz e, oxalá, Sol, que nos revitalizará com a sua vitamina D.

Como sou curiosa e procuro a origem das coisas, acabo de descobrir que a ideia original pertence a Franklin, algures em 1783, numa tentativa de poupança de cera de vela, a qual não terá merecido o acolhimento dos seus pares. Só bem mais tarde, na Primeira Grande Guerra, a Alemanha adota o Horário de Verão, procurando poupar carvão. Pragmaticamente e sem floreados como é hábito, os ingleses chamam "daylight saving time" ao Horário de Verão.

Ganhamos assim na fatura energética e o Ambiente agradece!