terça-feira, 22 de outubro de 2013

Correndo por terras Andaluzas

Quando nos propomos fazer 1500 km de carro para correr 83 km é expectável que, no mínimo, nos esforcemos para que sejam as “duas maratonas seguidas” mais memoráveis da nossa vida. Assim aconteceu.
A “Ultima Frontera” é uma prova circular, que se desenvolve em duas distâncias à escolha – uma volta de 83 km ou duas voltas de 83 km, totalizando assim os 166 km, vulgarmente designados de 100 milhas.
Há alguns meses havia decidido que tentaria completar as minhas primeiras 100 milhas mas, a 2 semanas do dia “UF”, resultado de inúmeros fatores com maior ou menor relevância, recuei na minha decisão. Alinharia na partida dos 83 km.
Dos 27 atletas que partiram às 9h15 de dia 19 de outubro em busca das 100 milhas, apenas 11 conseguiram fazê-lo com sucesso. Preciso dizer algo mais?
Destes 27, apenas uma era menina. Chama-se Carla e já falarei dela mais adiante.

Começando pelo fim…

Enquanto me arrastava, encosta abaixo, rumo a Loja, localidade onde se encontrava a meta dos 83 km e o ponto de partida para a segunda volta (para os valentes que seguiam para os 166 km), gritei para as estrelas e para quem me quisesse ouvir – pobre Zé! Zangada comigo, muito mesmo, exclamei como poderia ter tido a ousadia de, há uns meses atrás, ter pensado que teria condições para completar as duas voltas e, como tal, aquelas que seriam as minhas primeiras 100 milhas. Tenho tanto para aprender ainda. Tanto mesmo!
Estão de parabéns o Miguel e o Ricardo que, não só completaram com sucesso as primeiras 100 milhas, como o fizeram numa prova a que a gíria designaria de “pica-miolos”. Não se iludam. O que ambos fizeram não está ao alcance de muitos. Desde os primeiros passos, os primeiros metros, cada um daqueles atletas sabe que daí a umas horas estará a repetir exatamente o mesmo percurso. Acontece no entanto que, nessa altura, levará consigo o cansaço acumulado de muitas dezenas de kms e já conhecerá todos os desafios que o esperam pela frente.

Voltando ao início…

Na véspera da prova, falava com os meus filhotes. O Diogo, que já não se recordava bem do que a mãe ia fazer, perguntou-me quantos quilómetros tencionava correr. “83″ – disse-lhe. “Mas… já correste 100!”, respondeu indignado. Ainda assim, sabendo que não conseguiria deixar o meu filhote deslumbrado, lá alinhei animada na partida.
Andaluzia recebeu um grupo de seis divertidos portugueses. Numa prova organizada por um casal americano estabelecido em Espanha – os simpáticos Michelle e Eric -, verifiquei que eram poucos os espanhóis que por lá andavam. Ingleses, americanos, japoneses, dinamarqueses, belgas, alemães e até uma portuguesa que vive no Dubai… enfim… uma miscelânea de nacionalidades numa prova que reuniu 99 participantes. Os seis portugueses eram seguramente os mais animados. E também os mais barulhentos. Michelle, sempre atenta, não precisou de muito tempo para o perceber. Na primeira noite já exclamava “finally quiet“, nos raros momentos de silêncio que o Pedro lhe proporcionava.

O outono Andaluz, corrijo, o verão Andaluz!

Há várias semanas que brincava com estas palavras. Ultima Frontera seria a minha oportunidade para conhecer o outono Andaluz.
Quis o destino (ou São Pedro) que o dia fosse de verão. Terei que voltar de novo para conhecer as temperaturas amenas, desfrutar dos pingos de chuva no nariz, ouvir o vento soprando fresco e sentir os estalinhos das folhas que piso no chão.
Várias vezes olhei para as marcas desenhadas no alcatrão e na terra batida. Às vezes setas apenas, outras setas com as iniciais “UF”. Respondia-lhes “à letra”… Uffffff!

Partida, largada, fugida!

Partimos juntos, mas o Miguel, Pedro e Ricardo logo se distanciaram. O Zé corria com uma fascite plantar, pelo que teve que se proteger. Só desta forma o conseguiria acompanhar. Não sei se se protegeu efetivamente ou se fez estragos maiores correndo ao meu ritmo. Ele lá saberá. Creio que perto do km 81 desisti de insistir para que seguisse caminho, mais rápido. Era por demais evidente que não o ia fazer.
O trio Carla, Zé e Susana manteve-se coeso até cerca dos 70 km. Depois disso, a Carla acelerou e rumou em busca do seu sonho, ao som da sua música.
70 km e qualquer coisa como 12 horas a três. São estas partilhas que tornam estas experiências verdadeiramente únicas. Todos nós gostamos de correr sozinhos. No entanto, quando nos aventuramos nas longas distâncias, a companhia é um estímulo fundamental. Ora avança um, ora avança outro. “Mas será que viemos aqui para alguma caminhada?”, brinca um dos três. Daí a umas horas os papéis inverter-se-ão. Uns servem de lebre no alcatrão, outros são mais rápidos nos trilhos. Uns cantam, outros calam-se. Uns dizem disparates, outros riem-se. E todos, sem exceção, se interrogam “quem é que teve esta brilhante ideia de nos trazer para aqui?!”.

Adónis não vive no Olimpo, mas sim em Andaluzia!

Chegámos ao PC 2, correspondente aos 35 km, debaixo de um calor intenso. Sonho com coca-cola mas têm apenas água para me oferecer. Um dos elementos da organização convida-me a sentar e faço-o sem hesitar. Baixo a cabeça e, quando a levanto, convenço-me que estou a ter alucinações. Vejo chegar um jovem de corpo atlético, cabelo loiro, pela altura do queixo, correndo em tronco nu. Abri bem os olhos. Olhei para o meu copo para me certificar do que tinha dentro. Volto a olhar para o deslumbrante atleta. Vejo-o falar com os elementos da organização. Pergunto ao Zé e à Carla o que se está a passar. Interrogo-me se já vai na segunda volta. Estou verdadeiramente atordoada. Antes de partir, com a frescura de quem corre algures no Pólo Norte, deseja-nos “good luck“. Bem sabe que vamos precisar dela. De sorte! Vejo-o partir e finalmente entendo que leva 32 km de avanço, sendo que acaba de passar o ponto marcado no mapa como o cruzamento do “8″, que eu virei a cruzar mais tarde… muitas horas mais tarde.
Seguimos caminho e, em vários momentos, aquela imagem me atormentou. Não sei se o Adónishimself” ou o facto de perceber quão pequenina sou. Quão veloz ele era. Quão lenta eu sou. Quão resistente ele era. Quão destreinada eu sou. Mas, uma coisa é certa. Eu vi Adónis. Em carne e osso. Esse Deus existe!

O paradoxo da subida a Montefrio, debaixo de um calor abrasador…

Começa depois uma das subidas mais desafiadoras do percurso. Vários kms a subir, pisando o alcatrão. O calor aperta e o asfalto aquece os pés. O Zé explica-nos que o Carlos Sá corria sobre a linha branca do asfalto quando fez a Badwater. Aí o pavimento aquecia um pouco menos.
Na subida avistamos romãzeiras. Do que me recordo, só no início de novembro as romãs estarão boas para comer, mas quem sabe em Espanha amadureçam mais cedo. O Zé colhe uma romã e parte-a ao meio. De repente senti-me como uma criança com um punhado de Smarties na minha mão. Todos da mesma cor, claro. A romã estava incrivelmente verde e ácida, mas soube-me tão, mas tão bem! Certo é que foi aquela meia romã que me conduziu estrada acima, até Montefrio.
O calor não nos dava tréguas e a estrada parecia não ter fim. “Não tarda tenho pipocas a saltar da cabeça”, disse eu, admitindo que, naquela fase, apenas poderia ter milho dentro dela. O discurso era efetivamente pouco coerente.
Avistamos finalmente Montefrio. Vemos atletas a subir na direção em que descemos e questionamo-nos se vamos no caminho certo. O GPS da Carla diz que sim e continuamos a descida até à simpática localidade onde atingiremos a marca dos 48 km e onde nos espera o repasto que preparámos horas antes. À chegada liberto-me das meias de compressão, das caneleiras de compressão e de tudo o que me possa comprimir. Confesso que não sei fazer uso deste tipo de equipamento em dias de calor.

As oliveiras

Oliveiras à direita. Oliveiras à esquerda. O que tenho à frente? Oliveiras. Oliveiras por toda a parte. E assim penso nas “oliveirinhas” da minha vida – Inês e Diogo Oliveira -, que aquela hora deverão estar a brincar no eirado da casa dos avós. Rodeados de oliveiras, por sinal.

A luz do luar Andaluz

Estamos algures perto do km 70. Chegámos ao último PC antes da meta. A Carla deixou-nos há cerca de 2 kms. Arrancou depressa, para agarrar a segunda volta. Confesso que já não me restam grandes forças. O calor derrubou-me. Talvez ande exausta e precise de descansar um pouco. Adicionalmente, erro de principiante seguramente, sei que escolhi o calçado errado para este tipo de prova. Da próxima vez estudarei melhor a lição. “Correndo e aprendendo”, concluo rapidamente.
Bebo o quadragésimo terceiro copo de coca-cola do dia e prometo ao Zé que tentarei correr mais depressa. “Depois daquele poste, de acordo?”, dizia eu. E, sistematicamente, o poste avançava até ao seguinte, até à próxima ponte, até à árvore do lado esquerdo, até ao local onde se avistavam dois “faróis” pequeninos, anunciando um gato que nos observava.
Entramos numa zona de planície carregada de oliveiras e apercebemo-nos do luar a iluminar o caminho. Em simultâneo, extraordinariamente em simultâneo, apagamos os frontais e seguimos caminho com a Lua como companheira. Vale bem sair de casa por isto, caramba!
O meu telemóvel, em modo silêncio desde o início da prova, ilumina-se. Espreito e vejo que acabo de receber uma mensagem da minha amiga Sofia. Não resisto e ligo-lhe. E, por breves minutos, acompanha-nos estradão acima, debaixo do luar.

A meta

Os joelhos já não respondem quando lhes peço que avancem. Imploram-me que calce pantufas. Que sossegue. Que me sente num qualquer pouf a ver um programa tonto de TV. “Sim, já trato disso, mas ponham-me por favor ali em baixo. Estão a ver as luzes? É ali”, respondo-lhes.
Chegamos e encontramos o Pedro e a Carla. O Miguel e o Ricardo já estão na segunda volta. A Carla prepara-se para iniciar os “segundos 83″. Está entusiasmada. Abraços, beijos, mil “forças à Carla” e lá a vemos partir, noite escura fora. Questiono-me se é uma questão de loucura, de coragem ou de determinação. Talvez seja um pouco de tudo. Há um ano atrás, também o Zé seguia para a segunda volta, na companhia da Teresa Afonso.
Algumas horas mais tarde, já depois do banho e de um sono leve no pavilhão, acordo. Talvez seja a minha intuição de escorpião. Envio uma mensagem à Carla. Fico a saber que acaba de chamar a organização para a recolherem. 115 km depois, a guerreira Carla regressa a Loja, embrulhada não na manta de sobrevivência, mas numa capa dourada, que só as rainhas podem ostentar!
O sol parece querer nascer e aguardamos pelo Miguel e Ricardo. Já tivémos notícias do segundo que, depois de uma soneca de 30 minutos à beira da estrada, lá se decidiu meter a caminho da conclusão das 100 milhas. Em Loja é recebido como nenhum outro atleta. O Zé anuncia a chegada do Ricardo acordando toda a povoação. O Pedro corre atrás do Ricardo, filmando-o, num derradeiro sprint que não deve ter andado longe dos 3 min/km. Valente!
O Miguel, que esperávamos muito depois, tendo presente algumas informações da organização, surpreende-nos 30 minutos mais tarde. Não teve o acolhimento merecido, pois andávamos distraídos a descobrir os escorregas no parque infantil. Redimimo-nos como pudémos e oferecemos-lhe todo o banco traseiro do carro na viagem de regresso, para que pudesse dormir… como um bebé!

O regresso a casa…

Estamos cansados. Uns mais que outros. Queremos chegar a casa. Queremos chegar a casa rápido, de preferência.
Alguém que assume o papel de co-piloto (não referirei nomes) coloca-nos no meio de Sevilha. Não experimentem entrar em Sevilha sem o propósito efetivo de visitar a cidade. Dificilmente se consegue encontrar o caminho de saída. Fizemos um lindo tour e aproveitei para indicar partes do percurso da maratona que os restantes passageiros vão encontrar no próximo mês de fevereiro.
Quando conseguimos finalmente sair de Sevilha, rumando a Portugal, o co-piloto, cujo nome continuarei a não revelar, decide que qualquer coisa que se chama N433 e indica “PORTUGAL” em tamanho de fonte 456, deverá ser a melhor opção.
Não duvidem… Há muito que não percorria uma estrada tão bonita. “Que linda estrada para uma corrida”, exclamei! O Pedro discorda e diz que preferia fazê~la de bicicleta. Talvez tenha razão.
Como disse o Miguel, quase garantimos a entrada em Portugal na fronteira com a Guarda, mas que percorremos um lindo percurso para chegar a casa, lá isso percorremos!

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Amesterdão, um ano depois

Não, ainda não são as palavrinhas sobre La Ultima Frontera.
Impossível acordar hoje e não sorrir.
Há precisamente um ano, a esta hora, corria a minha primeira maratona em Amesterdão.
Os meus primeiros 42 km, na companhia do grande amigo Al.
A primeira a que chamam "Prova Rainha"....

Como diz o João Campos, a vida não é só corrida. Mas acredito genuinamente que a corrida me permitiu estar melhor em tudo o resto que faço. Os cientistas explicarão melhor do que eu porquê. Eu apenas posso dizer o que sinto. E o que sinto deve ser semelhante ao que sente o milho quando é aquecido e explode "virando" pipoca (vou usar esta analogia, numa ótica diferente, quando vos contar o que aconteceu em Andaluzia).
Correndo o risco de me tornar repetitiva, arrisco mesmo e volto a escrever o que disse há um ano.
Plantem uma árvore. Tenham um filho. Escrevam um livro. Sim, tudo isso. Mas corram também uma maratona. Vivam a ansiedade das semanas que antecedem a prova, os momentos de confiança e os de dúvida. Treinem. Olhem para o relógio. Não olhem para o relógio. Vivam com alegria o registo de um tempo melhor que o anterior. Protestem quando o treino não corre bem. Vivam a véspera, o dia da prova, a passagem da meta aos 42. Corram uma maratona. Aqui, ali ou em qualquer lugar.
Desejos de uma ótima semana!