quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Os 42 aos 36

O meu amigo José Guimarães tem um blog. Chama-se “De Sedentário a Maratonista”. Connosco tem partilhado muitas das suas aventuras, desde o primeiro dia em que calçou os ténis e correu uns metros na Praia de Carcavelos. Entretanto, dos metros evoluiu para os km, dezenas de km e, há 3 dias, quase duas centenas – 166 km em la Ultima Frontera em Espanha. Antes de partir para Amesterdão, desafiou-me para escrever sobre a minha primeira experiência “42”.
Vamos lá esclarecer uma coisa. Sou maratonista – na medida em que concluí a minha primeira maratona há 3 dias. Mas não era sedentária. Uma mãe de duas crianças de 6 e 5 anos não pode ser sedentária. Não é possível. É contra-natura. E existe sempre a possibilidade de, além de mãe, se ser daquele tipo de pessoa “pula-do-sofá”, quando se verifica que o comando da TV tem um desvio de 25º relativamente ao monte alinhado de revistas (sempre a mesma publicação, para ter exatamente as mesmas medidas). Uma pessoa assim não é de todo sedentária.

Adiante…

Decidi correr a maratona em março deste ano. Estava para os lados de Sesimbra, a estrear-me numa prova de trilhos. Corria há pouco mais de um ano. E porque o decidi fazer, perguntarão alguns de vós? Para visitar Amesterdão. Falso. Não precisava de um pretexto para viajar. E a cidade tem muito para oferecer. Canais, o Amstel, bicicletas, socas, Anne Frank, Van Gogh, bolos espaciais e especiais. Para provar ao “mundo” que conseguiria. Falso. O “mundo” sabe bem como sou teimosa e persistente quando meto uma ideia na cabeça. De resto, e naturalmente, o “mundo” não anda por aí preocupado com o facto de eu ser ou não bem sucedida nas minhas corridas. O “mundo” está em casa (ou fora dela) a fazer ginástica financeira, tentando gerir o pouco que tem, para o tanto que lhe falta. Para massajar o meu ego. Falso. Conheço outras formas menos penosas para alimentar o ego. Ocorre-me de imediato uma. Com o dinheiro gasto em inscrição na prova, viagem e alojamento comprava a minha super-pasteleira preta, com estofo camel, pneus castanhos e beges, guiador largo e cesta de madeira decorada com malmequeres e gerberas. Porque queria chegar ao fim. Verdadeiro. Neste último ano tenho lido e ouvido muito sobre o assunto. Testemunhos na primeira pessoa garantiam que a sensação era inigualável. Pois bem. Queria sentir isso.
Antes de prosseguir com este relato, esclareço desde já que não percebo nada de corrida. Apenas corro. Ao ritmo que me sabe bem. Esta é a experiência de uma “miúda” que correu a sua primeira maratona em 4h07m.

A preparação

Comecei os meus treinos “a sério” 6 meses antes da prova. Era um treino profissional. Para profissionais, eu diria. Tudo correu bem até ao momento das indesejáveis séries. Não sou veloz. Não tenho pernas de gazela. Sentia-me verdadeiramente exausta depois dos treinos de séries. E desconsolada. Recordo-me de ver a marca do Usain Bolt para os 400 metros nos JO de Londres este verão. 49 segundos. “Hummmm, este número é-me familiar”, pensei. Consultei os meus registos no garmin connect. Levara 1’49″ a percorrer a mesma distância. Daí a familiaridade. Mas faltava o algarismo “1″ à esquerda. Ora isso não estimula uma pessoa que se propôs a correr a maratona.
Fui à net e criei um plano da asics. Coloquei os meus dados, a data da prova e o tempo em que pretendia concluí-la. Estabeleci o número de treinos por semana – 4 dias em 7. Os treinos combinavam diferentes distâncias e diferentes velocidades. Cumpri sempre os objetivos. Parecia que tinham sido desenhados para mim. E foi desta forma, com muitos km nas pernas e dezenas de horas a correr por aí que cheguei ao dia “A”. “A” de Amsterdam.

A véspera

Na noite anterior à prova bebi um copo de vinho tinto. Sabem lá as propriedades calmantes da uva preta. Dizem que a camomila tem efeitos semelhantes. Mas não é a mesma coisa. Deitei-me antes das 22 horas. Estava exausta. E anestesiada pela uva preta. Demorei mais de 3 horas até adormecer finalmente. Senti literalmente os membros superiores e inferiores derreterem-se contra o colchão. A sensação era de que viravam pernas de polvo. Estranho, muito estranho. Felizmente não acordei molusco.

A prova

Quando tudo indicava que correria sozinha os meus primeiros 42 km, eis que surge uma lebre caída do céu. Duas amigas recentes das corridas puseram-me em contacto com um grupo que partia também para Amesterdão, para correr a meia e a maratona. Tudo gente bem disposta. E assim foi. Eu e o Al – tive que arranjar um nickname porque temia que durante a prova me faltassem as forças para chamar pelo Albísio e felizmente o Al aceitou de bom grado a minha sugestão – começámos na zona D, reservada aos atletas que pretendiam terminar a prova em 4 horas. Tudo aconteceu de alguma forma ao contrário do que previa. Passo a explicar.
O meu i-pod não carregara na noite anterior. Por esse motivo, a hit list que havia cuidadosamente preparado vários dias antes não viria a ser ouvida. Corri sem música. Primeira vez em que tal aconteceu. Ainda na volta inicial que se desenrola dentro do estádio olímpico, cai o gel de laranja. Não havia tempo a perder, pelo que não voltei atrás para o recuperar. Segui em frente.
Os primeiros km da prova foram um verdadeiro “slalom”. Passa pela direita, passa pela esquerda, passa pelo meio. Sempre com elegância – não sou miúda de cotoveladas. Verdadeiros congestionamentos. O Al estava entusiasmado. Disse-me para não olhar para o relógio e esquecer os km que faltavam. Assim o fiz.
Pensava que as 4 horas de corrida me permitiriam resolver mentalmente muitas equações de segundo grau e alguns integrais triplos. Que pensaria na vida. No que passou. No que está para vir. Nada disso. Como escrevi no início, tudo saiu ao contrário. Não consegui sequer apreciar realmente o percurso da prova. Nem dei pelo moinho (aparece nas fotos promocionais da maratona, pelo que acredito que lá esteja, algures). Ia concentrada na minha passada, na minha respiração, no piso e em não perder o Al de vista. Olhava para as pernas, para os ténis e rabiosques que tinha pela frente, fazendo avaliações cuidadosas dos outfits dos atletas. Vi vestidos e saias de corrida. Vi meias de compressão rosa-choque. Vi bandoletes com penas de pavão (ou de outra ave rara qualquer). É assim mesmo. Não tenhamos receio de nos afirmar enquanto corremos!
Já fora da cidade, por volta do km 15, olhei para o relógio. Achei que íamos rápido demais. 5´10''. “Ó Al, não vamos demasiado depressa?”, perguntei eu. Comi um figo seco que o Al trouxera. Não gosto de figos secos, mas aquele soube-me pela vida. Passámos os 21 km (meia-maratona, portanto) abaixo do meu melhor tempo. “Sinto-me bem”, pensei.
A dado momento o Al queixou-se de uma lesão que levava mal curada. O tendão de Aquiles. Reduzimos o ritmo. Mandou-me seguir. Não fui. Se o problema era o Aquiles, então eu seria a Helena de Tróia. As minhas desculpas pela falta de modéstia, mas não me importaria de ser a Diane Kruger naquele filme. Bem vistas as coisas, não me importaria de ser a Diane Kruger. Iríamos terminar juntos aquilo que havíamos começado. Faltavam muitos quilómetros ainda e eu sabia que iria precisar do Al ao meu lado.
Vi a marca dos 32. “A partir de agora descubro o admirável mundo novo”, disse eu. O meu treino mais longo havia sido precisamente de 32 km. Passei os 33, os 34, os 35 e os 36. Devo ter-me desviado do célebre muro. O tal de que todos falam, mas ninguém vê. Ia batendo com as minhas mãos nas mãos pequeninas de crianças que se encontravam junto à berma. Não falhei uma única loirinha, pequenina e de óculos. Só pensava na minha Inês.

A chegada

Quando avistei a placa “500 metros” comecei a choramingar. A sério que chorei. Ouvi um “bravo, madame!”. Agradeci em francês, claro está. Entrámos no estádio tal como tínhamos saído. Juntos. Dei um grito estridente para uma fotógrafa que estava muito bem posicionada quase na linha da meta. Espero conseguir localizar essa foto. Cruzámos a meta rigorosamente ao mesmo tempo – hora, minuto e segundo. Os resultados não me deixam mentir. “Estou muito feliz”, disse eu ao Al.

O dia seguinte

Mandam os manuais e artigos da especialidade repousar no dia seguinte à maratona. O Pedro havia-me acompanhado a Amesterdão para os meus primeiros 42. Não podia desiludi-lo ficando sentada num qualquer banco de jardim, num dos muitos e maravilhosos parques que Amesterdão oferece. Pedalámos todo o dia. Todo o dia. E fomos ao Rijksmuseum. Não estava com grande disposição para apreciar Rembrandt mas, verdade seja dita, não sei se algum dia estarei. Fiquei antes fixada num roupeiro feito de madeira de oliveira que pertenceu algures no tempo a uma qualquer princesa. Esse sim, teria gostado de trazer para casa.
Pedalar foi de facto uma grande estratégia. Poupei os pés e, rolando a baixa velocidade e com mudança baixa, fui alongando os músculos das pernas. Esta estratégia garantiu-me “dores zero” até ao momento.

E depois?

Muitos planeiam fazer uma maratona em breve. O testemunho que quero deixar é que está efetivamente ao alcance de qualquer um. Com treino, claro, muito treino. Falo de concluir uma prova em 4 horas e terminá-la bem, sem sofrimento. Falo também de Amesterdão, cuja altimetria é muito particular. Falo apenas do que conheço.
Esta manhã decidi que não queria de modo algum entrar na fase “blues do corredor”. Tinha que estabelecer um novo objetivo rapidamente. “Without having a goal it’s difficult to score”. Pois bem. Sevilha é mesmo aqui ao lado. Fevereiro é um mês perfeito para a segunda maratona. Está perfeito. Simplesmente perfeito.
Vou-me embora, que já se faz tarde, mas antes…
Plantem uma árvore. Tenham um filho. Escrevam um livro. Sim, tudo isso. Mas corram também uma maratona. Vivam a ansiedade das semanas que antecedem a prova, os momentos de confiança e os de dúvida. Treinem. Olhem para o relógio. Não olhem para o relógio. Vivam com alegria o registo de um tempo melhor que o anterior. Protestem quando o treino não corre bem. Vivam a véspera, o dia da prova, a passagem da meta aos 42. Corram uma maratona. Aqui, ali ou em qualquer lugar.
NB – Deveria terminar com um agradecimento em jeito hollywoodesco (lá estou eu com a mania que sou artista), mas sei que esqueceria algum nome importante e não me perdoaria mais tarde por isso. E, o que é certo, é que nestes momentos, à sua maneira, todos os que fazem parte da minha vida são importantes.


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