segunda-feira, 26 de maio de 2014

Lindo Faial, de Costa a Costa

(foto de Andreia Fontes)

Percorrer ilhas de Costa a Costa parece começar a fazer parte da minha vida. Felizmente o Faial é mais estreito do que a Madeira, poupando-me assim as alucinações que vivi há pouco mais de um mês naquela que designam de pérola do Atlântico.

Isto põe-me a pensar e a acreditar que a ilha do Faial seja a perolazinha do Atlântico, pelo simples facto de ser mais pequenita. Beleza não lhe falta. Só faltaram as hortenses "aos molhos". Infelizmente não é tempo delas.

Recuando 31 anos

As minhas amigas de sempre chamam-se Sofia. Estratégia minha. Desde cedo me rodeei de “sabedoria”. Conheci uma das Sofias com 7 anos, enquanto rebolávamos no relvado anexo ao Clube de Oficiais da Base Aérea nº 4, nas Lajes. Estávamos em setembro e ambas tínhamos acabado de aterrar a bordo de um Hercules C130. Creio que o C130 abanou demasiado, porque nem o meu pai nem o pai da Sofia pilotaram o dito aparelho. Entretinham-se antes com outros mais pequenos, mais rápidos, mais… acrobáticos!

Para quem não sabe, as Lajes ficam na ilha Terceira. A “terceira” ilha, de um conjunto de 9, que tive a sorte e oportunidade de conhecer nos dois anos que vivi e cresci nos Açores. Tenho pena de não poder oferecer à Inês e ao Diogo a liberdade de que usufruímos naquele canteirinho no meio do mar plantado. Um canteiro muito verde, sem quaisquer perigos, pelo que brincávamos livremente após a escola, até o sol se pôr, ansiando pela próxima visita ao “BX”, o famoso armazém na parte americana da base, para adquirir o modelo mais recente da Barbie, boneca que ainda não havia sequer sido descoberta pelas meninas do continente.

Fui uma criança cheia de sorte. E a Sofia também. E serve a presente introdução saudosista para dizer que 7 das 9 ilhas açorianas e suas gentes estiveram presentes enquanto fui crescendo e, por isso, nutro um carinho muito especial por elas. Continuam por conhecer as Flores e o Corvo. Lá chegarei.

Bom voltar ao Faial

Terei visitado o Faial pela última vez em 2007, por motivos profissionais. Os aeroportos fazem parte da minha vida e o do Faial não é exceção.

Soube bem voltar agora, movida pela corrida. Foram os trilhos que me fizeram regressar. E sabe muito bem nestes moldes, com um conjunto de várias dezenas de pessoas que partiram de Porto, Lisboa e região centro, para sujar os pés, a uns milhares de quilómetros do continente.

Num grupo tão grande, reina naturalmente a diversidade. Mas é impossível não nos sentirmos bem junto de pessoas que sabemos partilharem deste gosto pela montanha e que, mais do que ninguém, entendem a razão de ser de sorrirmos desmesuradamente, quando cortamos a meta, 46 km depois de termos partido, há 8h56m atrás.

A 500 metros da meta, ouvindo o meu nome e o do Rui, acabaram-se as dores e o cansaço, e só me lembro de soltar as pernas sobre aquelas cinzas fofas, ver o mar e uma mancha de gente ao fundo, a aplaudir-nos. Não faltaram as felicitações dos amigos e também do primeiro atleta a cortar a meta, 4h30 antes de nós. Grande Armando Teixeira. Belíssimo gesto para "gente da montanha" pequenina (literal e metaforicamente falando), como eu. 

46 km, "de A a Z"

Pusemos os pés a mexer na Ribeirinha, descendo até ao mar. Escusado será dizer que me apeteceu mergulhar naquelas águas. Às 9 da manhã o dia já prometia aquecer.

O Rui já me havia "briefado" e a estratégia seria seguir com calma até ao km 21, para depois tentar imprimir mais velocidade na segunda parte do percurso.

Cedo percebi que não conseguiria seguir senão com muita calma, claro! Depois de rolarmos um pedacinho, surgem diante de nós várias dezenas de degraus, aproveitando alguns socalcos, recentemente recuperados pela organização propositadamente para esta prova. Iríamos percorrer cerca de 22 km em trilhos até à Caldeira. Pela frente teríamos diversos pisos, ora em estradão, ora em pedritas, mas quase sempre subindo, subindo e subindo. Recordo particularmente o estradão aos ziguezagues, que me obrigou a "desenhar com os pés" a primeira letra do meu nome, umas várias dezenas de vezes.

Como escreveu a Anna Frost, o Azores Trail Run foi uma verdadeira experiência 360º. É de facto uma designação muito bem conseguida, esta da Frosty. Entre uma diversidade de pisos e paisagens, foram-nos sendo oferecidos cenários idílicos, do tipo "brochura férias de sonho", geralmente carregados de Photoshop. Aqui sabemos que vemos as coisas como são: o verde como só o conheço nas ilhas açorianas, um azul que só reconheço no mar que as rodeia e... vacas como não vejo em nenhumas outras paragens... e pastagens! Até as vacas são mais bonitas nos Açores. Mérito do prado, seguramente.

Na Caldeira inicia o Trilho dos 10 Vulcões, o qual percorre os 10 vulcões principais existentes no alinhamento fissural do Capelo. Pensava que conseguiria correr muito ao longo da Caldeira. A irregularidade do solo e o cansaço já acumulado nas pernas derivado das muitas subidas não me permitiu correr como desejava, pelo que lá fui seguindo como podia, tentando apanhar a minha lebre. Por vezes a lebre parava e ficava a contemplar tudo o que nos rodeava. Eu lá chegava, uns minutos depois, libertando para o ar longos suspiros.

Passamos por um casal sentado junto a umas pedras que serviam de miradouro. E por ali ficaram, porque os voltámos a ver um par de horas depois, quando o percurso voltou a passar perto daquele local. A Caldeira isso pede. Horas a contemplá-la. Horas a ver o verdadeiro "jardim botânico" que se desenvolve no seu interior. Creio que gostaria de descer lá abaixo um dia. E colocar-me sobre o exato ponto por onde começou a "festa explosiva", há muitos milhares de anos atrás. 10 mil, dizem. Poderia ter aprendido muito mais com o "wikipinho", mas o cansaço que sentia era tal, que a certa altura exclamei "quero lá saber da cn43$#%o0i5 dos 10 vulcões". Quem perdeu fui eu.

Tínhamos chegado às antenas, logo agora só poderíamos descer. Por alguns momentos somos brindados com nevoeiro. Eu que lá vivi, sei bem como os Açores são pródigos em oferecer as 4 estações do ano num único dia. A organização esteve tão irrepreensível que nem na meteorologia desiludiu. Sol e visibilidade extraordinária em quase todo o percurso, permitindo à vista alcançar o Pico e São Jorge.

Os voluntários recebem-nos em todos os postos de abastecimento como heróis, mas os verdadeiros heróis já aterraram há muito na meta. Estamos na "reta" final e não recuso a meia bifana que me é oferecida. Lá seguimos, e um pouco mais tarde vejo uma placa a indicar que faltam 5 km para os Capelinhos. Sei bem que 5 km podem demorar muito tempo a percorrer.

Apenas lamento a fadiga que já sentia na altura, porque foram os 5 km mais brilhantes do percurso. Cada qual se sensibiliza com o que lhe toca e eu comovi-me inúmeras vezes ao longo daqueles 5.000 derradeiros metros. De tudo um pouco. Trilhos onduladinhos a descer recheados de pedra-pomes. Escadas a subir o Cabeço Verde que me deixaram quase sem respiração. O verde continua a perserguir-nos. O vassoura Otávio acompanha duas brilhantes atletas uns metros atrás, que se estreiam na distância. O Rui segue na frente. Corre e volta atrás, como fez ao longo de toda a prova. Gostava de saber quantos quilómetros marcou o seu Garmin.

Chegamos à estrada. Receio que nos ponham a descer em alcatrão até lá baixo, à meta. Não. Pela frente temos 500 metros de cinzas. Cinzas fofas. Amortecem o impacto. Não receio cair sobre elas. E solto a pequenina Frosty que há em mim. Os 500 metros de corrida mais divertidos e saborosos que alguma vez vivi.

Não preciso repetir como chegámos à meta. Já o escrevi acima. Terminei feliz, com um sorriso de "Costa a Costa". E creio que o Rui também. Mesmo depois de várias horas a rebocar-me e a lidar com o meu mau feitio. Sou escorpião. É inevitável.

Até já, Faial...

Sim. Até já. Porque vou seguramente voltar. Para correr. Cheguei antes do pôr-do-sol, é certo, mas o Garmin morreu às 8 horas. Vou voltar também para petiscar no café delicioso junto à Praia do Norte. Para conhecer o que ficou por conhecer. Para rever o que tanto gostei.

Três dias depois, reconheço que mais importante que ter finalmente conhecido a Anna Frost, terá sido o trabalho herculano desta organização, muito particularmente do Mário, em garantir a sua participação no Faial Costa a Costa.

A presença da Anna Frost e a divulgação que esta atleta internacional fez desta ilha e deste Arquipélago colocaram seguramente os Açores nas bocas do mundo e mais além. Bem merecem! Aplausos, muitos, para todos os que montaram o Azores Tral Run!


13 comentários:

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    1. Saúde, é o que é preciso! Para gozarmos estas e outras aventuras! :-)

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  2. Obrigado Susana, por me proporcionares percorrer o Faial :-)

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    1. Começa a fazer a poupança para lá ires, pelos teus pés, em 2015! :-)

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    2. Não conheço os Açores... Levaste-me lá agora com as tuas palavras :)

      Lugar encantador, palavras encantadas carregadas de emoção que nos toca.

      Falas em heróis, pessoas grandes e pequenas... Sorrio. As nossas lutas, as nossas batalhas, os nossos desafios, as nossas lutas, as nossas conquistas...são nossas! Fazem-nos heróis sem ninguém saber :) Fazem-nos grandes sem ninguém notar :) e também não é preciso. Nós sabemos :) E basta!

      Beijinho, Grande Susana!

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    3. Grande beijinho para ti, "Maria".
      Obrigada pelas simpáticas palavras.

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  3. Olá Susana, obrigado por me levares a correr contigo...parabéns por mais este desafio concluído e por mais este texto magnifico. Estive 13 dias no Faial em 1999, de férias e adorei tudo, desde a beleza da ilha, as suas gentes, a comidinha...ai a comidinha :) ... na altura não corria, e estava longe de imaginar que uns anos mais tarde iria gostar tanto de correr no meio da natureza....este ano não deu, vamos lá ver se no próximo ano dá para fazer o percurso pelo meus próprios pés e não "apenas" por textos como os teus :)
    Dá-lhe forte Susana, a correr e a escrever ;)

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    1. Muito obrigada, Carlos. O Azores Trail Run merece mesmo uma inscrição em 2015! Até breve.

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  4. Obrigado Ana por mais esta deliciosa história contada de uma forma que pouco, ou nada, tem a ver com uma escorpião…

    Recuando 35 anos…

    Sem ser por motivos militares, também vivi 2 meses na Base das Lages (Bairro do Combóio), também tive oportunidade de fazer compras (poucas) no famoso PX e fui duas ou três vezes a um Clube militar americano que era, tão só, uma enorme discoteca onde, pela primeira vez, vi militares do sexo feminino.. . Não frequentei o Clube dos Oficiais, mas frequentei o dos Sargentos, porque trabalhei na construção do clube novo…

    Há 2/3 anos alguém anunciou um Trail no Faial e fiquei de olho na possibilidade de regressar ao Faial onde estive de passagem para o Pico em 2011 e onde trabalhei 3 meses em 1982 no arranque da construção do Hospital da Horta…

    Esse projecto de Trail abortou e quando apareceu este de 2014 já tinha planos avançados e não deu para lá ir. Para o ano que vem vou fazer tudo para lá estar, mas à hora que estou a escrever tenho conhecimento de mais um chumbo do T.C. no orçamento e, por consequência, não tinha que ser assim, mas o governo já o anunciou, vai haver agravamento de impostos e outros custos para a sociedade que podem obstar tal desejo…

    Em 1982 não fiz costa a costa, mas fiz a volta à ilha… de carro. Visitei várias localidades e, claro, a grande caldeira e os Capelinhos com o seu Farol semi enterrado… o Faial é uma pequena ilha, mas com um vasto leque de motivos que justificam plenamente uma visita!

    Beijinhos!


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    1. O Faial lá estará em 2015 para receber uma mão (várias!) cheia de atletas. Novos e reincidentes! Beijinho e obrigada.

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  5. Excelente crónica, como habitual.
    Quanto à prova, não foi nada difícil lidar com o teu (mau) feitio, perfeitamente aceitável para quem tem de me aturar tantas horas. Correr contigo foi a cereja no topo.
    Adorei a ilha. Contigo foi (ainda mais) especial. Havemos de partilhar muitos km, seguramente.

    Beijo grande!

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  6. Fantástico mesmo! Tanto a prova que deve ser lindissima, assim como a tua narrativa, até dá ainda mais vontade de lá ir correr!

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