segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Sol de Inverno em Sicó



São 5:30 AM. Acordo em modo "tenho que escrever". E é isso que faço agora. Ao contrário do que sempre acontece, ontem não "escrevi" ao longo dos 52 km que constituíram o percurso do Trail de Conímbriga, em Sicó. Talvez fosse demasiado ocupada a pensar noutros assuntos que mereciam ser pensados num enquadramento daqueles. E a serra traz-me isto. Oferece-me isto. Tempo para pensar. Pensar envolta de cenários inspiradores de qualidade HD.

Parti bem cedo com um grupo de amigos de Lisboa. 200 km, algumas peripécias e música de Maná - pensando nos outros amigos que se encontravam em Sevilha à mesma hora - depois, chegámos ao destino.

O São Pedro bem mereceu o título de santo ontem. Que lindo dia de Sol! O Sol de Inverno acarinhou várias centenas de atletas, que saíram com as doses de Vitamina D repostas. Que bem que soube!

Troquei Sevilha por Sicó

Na partida lá estavam as caras do costume. Encontro algumas, outras encontram-me a mim. "Não estavas em Sevilha, Susana?", perguntam. Sorrio e digo que mudei de ideias.

E mudei sim. Há cerca de duas semanas havia decidido que não iria correr a maratona em Sevilha. Queria guardar Sevilha como foi em 2013. Com a família a meu lado, cruzando-se comigo em vários pontos do caminho. Com a saia de sevilhana, que inicialmente me fez querer enfiar num buraco percebendo que era a única atleta que tinha escolhido um equipamento diferente e depois se revelou a mais inteligente opção, merecendo a triplicar as palavras de incentivo dos locais que pensavam que fosse uma "das suas". Sevilha foi perfeita assim e deste modo a quis guardar.

A partida com os abútricos

Percorri a primeira parte do percurso com alguns elementos da família abútrica. Em alguns momentos tive que pensar se deveria parar para rir ou tentar correr rindo. Depois de alguns quilómetros mais planos, começam a chegar os montes que nos fazem "meter a primeira" e fazer-me pensar "ri-te agora, Susana". Não tinha comigo os bastões pelo que a tarefa se afigurava algo mais complicada. Parti um bastão na Lousã em janeiro e ainda não fui tratar do assunto. Rapidamente concluí que não vivo sem eles. Os bastões.

Começa a diversão

Depois do primeiro abastecimento na Ameixeira, em que recebo as palavras de incentivo da Ana Cristina do Mundo da Corrida, sigo caminho ao lado do Pedro Lizardo que não veio claramente com o propósito de chegar rápido à meta. Fazendo sprints para trás e para diante, como se de uma gazela se tratasse, vai procurando o melhor plano, a melhor perspetiva e divertindo-se com a sua câmara. Vamos querer essas imagens  editadas, Pedro! Surge a primeira subida mais íngreme onde me estreio nas quedas e no encontro com a lama. Seguem-se uns trilhos onde me divirto, tentando escapar às pedras rolantes. Chegados cá abaixo subimos um pouco e sabemos que em breve estaremos no segundo abastecimento, onde nos aguardam... os queijos!

Pão com queijo e mel, não uma, nem duas, mas... três vezes!

No Poço, começo pelos gomos de laranja mas rapidamente me rendo ao pão de mistura com queijo e mel. Preparo uma fatia que me coloca algumas dificuldades a comer, tal a altura dos ingredientes.

Há por aí uma foto a registar o digno momento, que proibi determinantemente o autor de publicar!

O cenário viria a repetir-se umas vezes mais. Comi pão com queijo e mel para os próximos seis meses!

O cavaleiro no cavalo branco

Como dizia ontem, a generosidade da família abútrica não se circunscreve à Serra da Lousã. E assim foi. O José Carlos insiste pela décima vez para que fique com os seus bastões porque vou precisar deles. "E tu não precisas?", pergunto. "Espero por ti no próximo abastecimento e logo mos dás", respondeu. Foram "apenas" os bastões do José Carlos, mas souberam ao que deve saber o resgate por um cavaleiro a galope no seu cavalo branco. José Carlos, acabas de ganhar mais um título, a adicionar ao vassoura-simpatia que arrecadaste nos Ultra Trilhos dos Abutres. Que me perdoe o João Martins que abraçou a nobre tarefa de vassoura na prova de ontem. Não tive o prazer de correr na sua companhia. Sei que teria sido uma fantástica experiência. Mas ontem estava num modo lento-endiabrado!

Uma casa na pradaria

Chegamos novamente ao vale e ao terceiro abastecimento. Villa Romana Rabaçal, de seu nome. O José Carlos não me espera, como de resto já era expectável. Seguiu sem os seus bastões. Enganou-me! Nessa altura decido então regulá-los e adaptá-los à minha estatura, para que deles melhor possa usufruir. Mais uns gomos de laranja, uns tragos de coca-cola, o pão com queijo e mel e... siga que se faz tarde!

A dado momento avisto as eólicas e não me restam dúvidas que subiremos lá acima. Também não as tenho quando vejo uma antena. Nestas provas longas, sabemos de antemão que teremos oportunidade de visitar todos os pontos mais altos das redondezas.

Mas esta subida às eólicas faz-me parar para tirar um retrato. Ainda estou do outro lado da montanha, terei que descer até à base da seguinte e já vejo pontinhos que não são mais do que atletas a subir a pique até ao topo. Solto uma valente gargalhada e sigo o meu caminho. Os bastões são a mais preciosa ajuda. Ajudam-me a marcar o ritmo e a não esmorecer. Chegada ao topo, caminho uns metros, cruzo-me com uma corporação de bombeiros e procuro o trilho a seguir. De repente assunto-me. Assusto-me a valer. Olho o chão e a sombra das pás das eólicas gira no solo. Uma das sombras raspa-me na orelha. Sério que me raspou na orelha!

Segue-se um estradão de cascalho branco que ladeia as dezenas de moinhos de vento no topo da montanha. Sítio perfeito para estar no início de tarde de domingo. É também nesta altura que penso em Sevilha. "Se lá estivesses, a esta hora, melhor ou menos bem, estarias a concluir a tua missão". Não tive pena. Era ali que queria estar. Mesmo sabendo que ainda tinha metade do percurso pela frente e pelo menos mais 4 horas a monte.

Depois dos 40 K, o onduladinho

Quem me lê e acompanha há algum tempo, sabe bem que estes são os meus favoritos. Os onduladinhos. Não sobem muito, não descem muito. Os arbustos fazém cócegas nas pernas. As silvas arranham. Adoro os onduladinhos. 

Chegados a mais um topo - sinto que subi 40 montanhas ontem - a minha intuição de escorpião dá o alerta. "É agora que nos vamos divertir?", pergunto ao Pedro. E é mesmo. O Pedro sai na frente e eu sigo como posso, no modo mais endiabrado que conheço, acreditando que há um nadica-de-nada de Frosty um mim. Salto, abro a passada, dou pontapés das pedras, receio ficar sem dentes, mas divirto-me por demais naquele onduladinho. O sol está perfeito e só penso nas fotos da Anna Frost debaixo do sol neo-zelandês! 

Depois deste, segue-se um outro trilho. Um trilho bem cerrado, carregado de pedra que dificulta a progressão, mas de uma beleza incrível. A humidade já se faz sentir e os cheiros ganham outra dimensão. Rapidamente sou ultrapassada pelo Luis e Nicolau. Volto apenas a encontrá-los uns metros adiante porque...

Há festa em Casmilo!

Chego ao penúltimo abastecimento. Música, tendinhas, aldeões. Tenho dificuldade em encontrar os atletas e a mesa do abastecimento. Que festa nesta tarde de sol de Inverno! Se tivesse levado a saia de sevilhana ter-me-ia juntado ao rancho seguramente!

Sei que aquela será a derradeira experiência com o pão, queijo e mel da região e por isso demoro-me por lá mais um pedaço. Estamos todos juntos agora. Todos juntos! Vamos terminar isto?

Sem bateria no garmin, mas "Antes do Pôr-do-Sol"!

Há dias um amigo brincava comigo dizendo que havia escolhido mal o nome para o meu blogue. "Antes da bateria do garmin acabar", disse ele. "Esse é que era o nome certo!", acrescentou.

A bateria do garmin acabou depois de 8 horas de funcionamento. Ainda faltam uns quilómetros. Usando as palavras do Luís Sommer, vou exclamando "o último a chegar é um ovo podre"! Fui ovo podre em inúmeras situações hoje. Também exclamei "fartinha, fartinha, fartinha"! Mais do que as pernas, só a cabeça pode aguentar tanta hora a monte. E quando chegamos ao fim e verificamos que a cabeça superou, sabemos que crescemos mais um bocadinho.

9h01m depois saímos... Mais fortes. Mais confiantes. Melhores. E por isso voltaremos!

Até breve, em Vila de Rei!


6 comentários:

  1. Muito bem, não sei o que sentes mas como o descreves e isso é sempre muito emocionante...
    beijinho

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  2. Releio hoje, com mais calma, e ainda me lembro de estar a acabar a descida mais íngreme e vos ouvir a rir, mais a «estória do ovo podre»... Delicioso relato! Obrigado!

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